Perímetro Irrigado Tabuleiro de Russas

PERÍMETRO IRRIGADO TABULEIRO DE RUSSAS (CE): A TERRITORIALIZAÇÃO DO AGRONEGÓCIO E A EXPROPRIAÇÃO DAS COMUNIDADES RURAIS EM TRANSIÇÃO AGROECOLÓGICA

Os planos do Governo Federal para o aproveitamento hidroagrícola no Vale do Jaguaribe intensificaram-se na década de 1960, com a elaboração do Estudo Geral de Base do Vale do Jaguaribe, realizado pela Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE). Com base em informações extraídas de Brasil (1991) os estudos mapearam importantes zonas de solos férteis, propícios ao desenvolvimento da agricultura irrigada, que subsidiaram a implantação de diversos perímetros irrigados na região do Vale do Jaguaribe, entre eles o Perímetro Irrigado Morada Nova, no ano de 1968, o Perímetro Irrigado Jaguaruana, no ano de 1975, e o Perímetro Irrigado Jaguaribe-Apodi, no ano de 1987.

Para a expansão da área irrigada na bacia do rio Jaguaribe, em meados de 1987, o Departamento Nacional de Obras Contra a Seca (DNOCS), com base nas diretrizes do Programa Nacional de Irrigação (PROINE), retomou os estudos sobre aproveitamento hidroagrícola da região, com a produção do plano intitulado de Estudos da Viabilidade da Zona de Transição Tabuleiros de Russas, que identificou uma área de 15.000 hectares de solos irrigáveis, subsidiando, assim, as ações Governo Federal para implantar o mais recente perímetro irrigado do Vale do Jaguaribe, o Perímetro Irrigado Tabuleiros de Russas (PITR) (BRASIL, 2005).

O DNOCS dividiu a implantação do PITR em duas etapas: as obras da primeira etapa iniciaram no ano de 1992, totalizando 10.765 hectares (ha) e a segunda, com 3.365 ha, no ano de 2008. A 2ª etapa do perímetro Tabuleiros de Russas conta com investimento de R$120.05 milhões, do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC-2). A área é constituída por uma ampla superfície aplainada, ao longo da margem esquerda do Rio Jaguaribe, apresentando solos podzólicos vermelho-amarelo, areia quartzosas, litólicos de substratos gnáissicos, etc., de textura superficial normalmente arenosa ou média (BRASIL, 2005).

Para implantação do Perímetro, o Governo Federal, representado pelo DNOCS, implantou um sistema de engenharia hidroagrícola composto por (i) estações de bombeamentos; rede de canais e tubulações, que garantem o aporte hídrico necessário à produção; (ii) sistema de irrigação (predominantemente micro-aspersão e gotejamento); (iii) rede viária para acesso/escoamento da produção e (iv) rede de drenagem, para proteção das áreas irrigadas e das estradas do perímetro.

O aporte hídrico é garantido pela política de açudagem orquestrada ao longo dos anos pelo Governo Federal. As estações de bombeamento e canais captam água no Rio Banabuiú, afluente do Rio Jaguaribe, que tem sua vazão regularizada por três açudes localizados à montante do ponto de captação:

  1. Açude Público Federal Arrojado Lisboa, situado no Rio Banabuiú, no local denominado Boqueirão do Meio. O reservatório possui um volume máximo de 1.601.000.000 metros cúbico.
  2. Açude Público Federal Vinícius Berredo, sobre o Rio Sitiá, afluente do Rio Banabuiú, com volume máximo de 434.049.000 metros cúbico.
  3. O Açude Público Federal Castanhão, situado no Rio Jaguaribe, com volume máximo de 6.700.000.000 metros cúbico.

A instalação e operação do Perímetro Irrigado Tabuleiros de Russas, contudo, não acontece num espaço ‘vazio’, sem ocupação e usos do território. Ocupavam e ocupam a mesma área disputada pelo DNOCS um conjunto de comunidades rurais, que desde a década de 1930, se apropriaram do território e desenvolveram/desenvolvem um conjunto de saberes e práticas, que divergem da racionalidade economicista impregnada na política de irrigação proposta pelo órgão.

Os planos e obras do DNOCS, contudo, expressam uma concepção abstrata do espaço, entendendo-o como palco, receptáculo, como mero componente físico, desprovido de dinâmica, vida, identidade, sentidos e sujeitos sociais. Tal concepção implica na imposição de uma racionalidade exógena, distinta das formas de apropriação e de usos do território em curso nas comunidades rurais atingidas pela instalação do PITR.

É possível apreender que o planejamento, implantação e operação das políticas de (des)envolvimento aplicadas pelo DNOCS, com destaque para os perímetros irrigados, foram e são marcadas pelo aumento da tensão social e dos conflitos territoriais, via imposição autoritária de racionalidades produtivas exógenas ao lugar, invisibilização dos sujeitos sociais e suas práticas de uso do território, ausência de diálogo com as comunidades envolvidas no conflito e imposição desproporcional de riscos sócio-ambientais às populações atingidas, que arcam com a maior parcela de impactos e convivem com os passivos do modelo de (des)envolvimento proposto.

Ao analisarmos a concepção, implantação e operação do Perímetro Irrigado Tabuleiros de Russas percebemos a repetição das estratégias do Estado para impor uma concepção de território enquanto recurso, em contraponto à lógica das diversas comunidades rurais que apreendem o território enquanto abrigo (SANTOS, 1997). Esta oposição, inconciliável, se expressa em formas distintas de significar a vida, a natureza, a agricultura e disparam conflitos que materializam uma geografia desigual dos rejeitos e proveitos dos resultados das políticas de (des)envolvimento (PORTO-GONÇALVES, 2006). Resultados que conformam um modelo de intervenção territorial em que os rejeitos são absorvidos pelas populações expropriadas/atingidas e os proveitos são apropriados privadamente pelo Estado e pelo agronegócio, que drenam os lucros extraídos do local para lugares longínquos, numa verdadeira sangria do território (SOUZA, 1994).

Para desvelarmos os conflitos impostos pela instalação do Perímetro Irrigado Tabuleiros de Russas, estruturamos nosso texto com o objetivo de responder as seguintes perguntas de partida:

Quais justificativas são utilizadas pelo Governo Federal, via DNOCS, para implementar o Perímetro Irrigado Tabuleiros de Russas? Qual o discurso do DNOCS sobre o território e os sujeitos sociais atingidos pela intervenção territorial? Quais são as comunidades rurais atingidas? Quais usos e apropriações do território foram/são desenvolvidas pelos(as) agricultores(as) locais? Quais os conflitos podem ser identificados com a intervenção territorial em curso? Quem irá se apropriar das benesses pós-instalação do perímetro? Quais riscos são impostos às comunidades rurais como resultantes da política de irrigação proposta pelo DNOCS?

Para alcançar as respostas das indagações, utilizamos as seguintes fontes de informação: as pesquisas de Braga (2010) e Alves (2012); os Estudos de Impactos Ambientais da primeira e segunda etapa do Perímetro Irrigado Tabuleiro de Russas; o laudo antropológico produzido pelo Ministério Público Federal (MPF), no ano de 2009; e o arquivo da Cáritas Diocesana, organização não-governamental, que contribui com a Comissão de Resistência das comunidades rurais do Tabuleiros de Russas nas negociações com o DNOCS. Destacamos que no arquivo da Cáritas é possível consultar as atas de reuniões com órgão propositor do projeto; os diversos ofícios encaminhados ao DNOCS e MPF, pela Comissão de Resistência; registros fotográficos e a contraproposta de projeto de reassentamento construída pelas comunidades atingidas.

Além das fontes citadas, destacamos que os autores do presente texto acompanham o conflito desde 2009 – participando das reuniões de negociação, audiências públicas, reuniões de planejamento da Comissão de Resistência, atos de rua – ações que possibilitaram apreender a dinâmica do conflito em curso.

É PRECISO SUPERAR O TERRITÓRIO DO ATRASO E LEVAR O (DES)ENVOLVIMENTO

Para implantação do Perímetro Irrigado Tabuleiros de Russas, o Governo Federal publicou o Decreto nº 97.143, de 29 de novembro de 1988, que declara de utilidade pública e interesse social uma área com aproximadamente 24.471,2900 ha (vinte e quatro mil, quatrocentos e setenta e um hectares), necessária à implantação do projeto. Com a declaração de utilidade pública, coube ao DNOCS iniciar os trâmites administrativos para desapropriar os proprietários e comunidades incluídas na poligonal da área selecionada.

A primeira etapa do projeto de irrigação Tabuleiro de Russas previa a implantação de um distrito agrícola irrigado, com área total de 10.795 ha, atingindo, conforme o quadro 1, 22 comunidades rurais, compostas por 782 famílias impactadas diretamente pela construção do projeto. Segundo Brasil (2005) está em curso, já na segunda etapa, a desapropriação de 306 propriedades rurais, com um contingente populacional de 67 famílias, distribuídas em 8 comunidades, como podemos observar no quadro 1.

Quadro 1: Comunidades atingidas pela instalação do PITR

1ª Etapa 2ª Etapa
Lagoa Salgada; Massapé de fora; Massapé de dentro; Lagoa da Várzea; Sussuarana; Paraíba; Povoado do Mari; Canafístula de Baixo; Baixio dos Azuis; Sítio Córrego Vinte e Um; Córrego dos Estácios; Germana; Açude dos Venâncios; Córrego Salgado; Tanquinhos; Lagoa da Roça; Umari; Iracema; Capece; Liberdade; Baixio Verde; Lagoinha Escondida, Bananeiras, Sítio Junco, Lagoa dos Cavalos, Córrego Salgado, Barbatão, Sussuarana, Peixe.

Fonte: BRASIL (1991) e BRASIL (2005). Organização dos autores.

Para iniciar a instalação do Perímetro Irrigado Tabuleiros de Russas, além do requisito legal do licenciamento ambiental, o governo federal, representado pelo DNOCS, necessitava produzir um discurso para legitimar a declaração de utilidade pública e a conseqüente desapropriação das comunidades atingidas.

O discurso que legitima e justifica a obra tem dois destinatários. O primeiro é o órgão licenciador, que com base na avaliação do estudo ambiental emite a licença de prévia, de instalação e operação do projeto irrigado, garantindo a sua autorização legal. O segundo é a sociedade civil, isto é, a opinião pública. Na sociedade civil, contudo, disputam diversos interesses, alguns divergentes à instalação da obra e outros convergentes à sua chegada.

Para enfrentar as opiniões divergentes e angariar o apoio dos diversos segmentos da sociedade civil, o Estado, representado pelo DNOCS, usou de diversas estratégias para conquistar, no plano ideológico, a aceitação, legitimidade e a necessidade da obra. A estratégia teve como objetivo neutralizar a crítica e a resistência daqueles que questionavam os verdadeiros interesses das políticas de irrigação, com destaque para as comunidades atingidas e seus grupos de apoio.

Para a instalação do PI Tabuleiro de Russas, a primeira estratégia utilizada foi construir uma trama discursiva que legitimasse a necessidade da intervenção territorial. A análise dos estudos ambientais, da 1ª e 2ª Etapa do PITR, contribuem para desvelar a produção, por parte do Estado, de um arcabouço ideológico que justifica a implantação da obra.

Tal discurso tem como marca a construção simbólica de um território caracterizado pela escassez hídrica, pobreza, baixa produtividade agropecuária e rarefeita ocupação da terra. Segundo os estudos, a instalação do PITR cumpriria o papel de retirar do ‘atraso’ essa ‘região-problema’, via irrigação, inserindo os agricultores numa nova lógica de produção moderna, em substituição às suas práticas de produção agrícolas rudimentares, como podemos observar na seqüência:

A intervenção do Estado, através dos programas de irrigação, objetivando transformar em agricultáveis áreas inexploradas ou precariamente exploradas, devido às suas condições naturais desfavoráveis, finda por desencadear mudanças sociais profundas (BRASIL, 1991, p. 193, grifo nosso).

Observando-se os índices de produtividade média das culturas cultivadas na área da pesquisa em relação aos obtidos para a área de influência indireta, obtém-se uma análise preliminar do nível tecnológico da agricultura praticada na área. Em termos comparativos, com exceção da cultura do caju, a produtividade da área pode ser considerada baixa, o que pode ser atribuído não só a escassez de recursos hídricos na região como ao caráter rudimentar da sua agricultura (BRASIL, 2005, p. 158, grifo nosso).

No decorrer dos estudos, a seca é apontada como problema central para o pleno (des)envolvimento agrícola da área disputada pelo DNOCS, justificando a instalação do perímetro irrigado como estratégia de ‘vencer’ as ‘intempéries’ do clima. Além do determinismo ambiental, impregnado nas argumentações dos estudos em análise, outro fator que, segundo os estudos ambientais, caracteriza o ‘território do atraso’ são as práticas agrícolas rudimentares utilizadas pelos agricultores locais, bem como seu grau de instrução escolar. O diagnóstico produzido pelo estudo ambiental da primeira etapa constatou que entre os atingidos:

94,5% dos chefes de família não têm condição de realizar as operações fundamentais. Considera-se como tal aqueles que por esta característica apresentam-se como totalmente inaptos para dominar a lógica empresarial em seu nível mais rudimentar. Deste grupo, 26,4% são totalmente analfabetos e 45,6% apenas assinam o nome. Dos 5,5% que realizam as operações fundamentais, ou seja, demonstram possibilidade de integração e domínio de empreendimentos agrícolas, apenas 32,6% concluíram o 1º grau (BRASIL, 1991, p. 138, grifo nosso).

O nível tecnológico em famílias que exploram a agricultura, como era de se esperar, é baixo. Do total de famílias que exploram a agricultura, 5,4% utilizam a adubação orgânica, 5,5% a adubação química e 91,4% não adubam suas lavouras (BRASIL, 1991, p. 188, grifo nosso).

No Estudo de Impacto Ambiental da Segunda Etapa encontramos, também, outros elementos que o Estado utiliza para qualificar como ‘rudimentar’, ‘atrasada’, ‘improdutiva’ a agricultura praticada por décadas no território em disputa. O estudo lista a ausência de uma série de práticas agrícolas e de gestão que, segundo o olhar do Estado, marcam a baixa produtividade agrícola e justificam a instalação do projeto de irrigação, entre elas destacamos:

-A não utilização de adubação química;

-A não utilização de sementes selecionadas;

-A predominância da tração animal como força motriz dos trabalhos agrícolas;

-A baixa capitalização dos produtores, no quesito mecanização agrícola, por utilizarem estratégias coletivas de uso comum de tratores, via Associações e Prefeitura.

-A ausência de irrigação, condicionada pela escassez de recursos hídricos;

-A ausência de assistência técnica e crédito agrícola (BRASIL, 2005, p. 159).

Para os propositores do projeto de irrigação o quadro de ‘atraso’ e ‘baixa produtividade’ poderá ser revertido com a instalação do perímetro, assumindo o Estado o “papel de administrador das tensões sociais, tentando oferecer alternativas que possam inserir no circuito capitalista as comunidades alocadas nas franjas da fronteira agrícola em expansão” (BRASIL, 1991, p. 193-198).

Fica claro, no decorrer dos EIA’S, que a política de irrigação, via perímetros, tem como objetivo a incorporação dos territórios do ‘atraso’ à lógica do capital, tendo como modelo ideal o modus operandi do agronegócio, como podemos perceber nas passagens a seguir:

O projeto visa contribuir, ainda, para a expansão das atividades de fruticultura irrigada, com qualidade total, de forma a tornar a região uma das líderes nacionais neste segmento, gerando empregos permanentes. […]

Em suma, o projeto servirá como pólo de difusão de técnicas agrícolas modernas para a região, incluindo aspectos agrotécnicos, organizacionais, gerenciais, de engenharia, de comercialização e de capacitação de recursos humanos, contribuindo assim para o seu desenvolvimento. Conferirá ainda, competitividade às atividades econômicas desenvolvidas na região, interiorizando o desenvolvimento com estímulo a atração de agroindústrias e, em consequência, promovendo o bem-estar e social das populações envolvidas (BRASIL, 2005, p. 12, grifo nosso).

Com o início da operação do perímetro irrigado, haverá um grande impulso nas atividades do setor agrícola da região, visto que esta compreende terras de boa qualidade e aptas para a irrigação, as quais na sua grande maioria, são atualmente pouco cultivadas por se tornarem anti-econômicas na exploração para cada proprietário individualmente, dada a escassez de recursos hídricos. O desenvolvimento de uma agricultura tecnificada, centrada na produção de culturas nobres (fruticultura), permitirá ao homem rural auferir rendas superiores à obtida na agricultura de subsistência, o que terá reflexos positivos sobre a arrecadação tributária (BRASIL, 2005, p. 199, grifo nosso).

Resta claro, que a lente utilizada pelo Estado para capturar o território tem como base a racionalidade capitalista do agronegócio. As variáveis utilizadas para avaliar as práticas agrícolas e saberes das comunidades se sustentam em dois blocos:

1 – a adoção do pacote técnico da revolução verde: mecanização agrícola, uso de fertilizantes químicos, agrotóxicos e produtividade por hectare;

2 – a adoção culturas ‘nobres’: com destaque para a fruticultura tropical, que apresentam rentabilidade monetária e são estratégicas para a balança comercial brasileira, contribuindo com a inserção do país, via exportação, nos circuitos internacionais da produção agrícola.

Outro elemento discursivo que emerge como justificativa para a execução da obra é avaliação das condições de vida da população atingida e sua densidade demográfica. Os estudos buscam construir, a partir de um referencial urbano de ‘qualidade de vida’, um território marcado pela ‘precariedade’, utilizando-se de variáveis como tipologia habitacional, acesso aos serviços de saneamento (água e esgoto), energia elétrica, isolamento geográfico, ausência e/ou carência de equipamentos públicos de saúde e educação, desemprego entre outros, como podemos observar na passagem a seguir:

As expectativas da população da área pesquisada, representada pelos 16 entrevistados, confirmam a precariedade das condições de vida vigente na área. A principal aspiração da população da área é a obtenção de recursos que possibilitem a vida em condições mais dignas, buscando solucionar os problemas de escassez de recursos hídricos, desemprego, falta de assistência técnica e creditícia aos pequenos produtores, entre outros (BRASIL, 2005, p. 167, grifo nosso).

No que diz respeito a densidade demográfica, isto é, quantas famílias serão atingidas pela instalação do perímetro, os documentos oficiais buscam construir um território marcado pelo vazio demográfico, com objetivo de justificar que a intervenção territorial trará um impacto mínimo, atingindo poucas famílias:

Com relação à densidade demográfica, a área coberta pela pesquisa apresenta uma carga demográfica bastante rarefeita (7,86 hab/km²), apresentando-se muito menor que a dos municípios da área de influência indireta, que varia de 23,13 hab/km² em Morada Nova a 64,63 hab/km² em Limoeiro do Norte. Verifica-se, também, que a densidade demográfica da área tem uma correlação negativa com o tamanho das propriedades, visto que as propriedades menores apresentam maior concentração populacional (BRASIL, 2005, p. 147, grifo nosso).

É preciso deixar claro que o estudo ambiental da Segunda Etapa, na fase de pesquisa de campo, adotou uma metodologia fabricada para invisibilizar a complexa territorialidade das comunidades rurais e reforçar o discurso mistificador do Estado. Como informa o documento:

A pesquisa de campo realizada na área da 2ª Etapa do Projeto Tabuleiros de Russas, em meados de fevereiro de 2005 por equipe do DNOCS, englobou 14 propriedades representando, aproximadamente, 5,0% do total de propriedades atingidas pela implantação do projeto de irrigação (306 propriedades) (BRASIL, 2005, p. 143, grifo nosso).

Cabe destacar, ainda, a estratégia utilizada pelos elaboradores do estudo para expressar tal densidade demográfica. Com base nos dados produzidos pela pesquisa, a partir de uma amostragem de 5% das propriedades existentes na poligonal da desapropriação, foi calculada a densidade demográfica da área, resultando em 7,86 hab/km². Somado ao erro crasso de extrapolar a realidade de 14 propriedades para o universo de 306, o estudo utilizou como critério de comparação a densidade demográfica de dois municípios vizinhos, Limoeiro do Norte e Morada Nova. Uma consultada rápida ao site do Instituto de Pesquisa e Estratégia Econômica do Ceará (IPECE), no documento Perfil Básico do Município, percebemos que os dados utilizados para fins de comparação referem-se às densidades demográficas do município como um todo, tendo como referência o ano 2000[1].

Assim, comparar densidade demográfica de 14 propriedades rurais com a densidade demográfica dos dois maiores municípios da região do Baixo Jaguaribe é produzir informações perversas, é ocultar a realidade, é produzir um território abstrato. Tal estratégia de não investigar a complexidade social do território foi fundamental, por exemplo, para construir um discurso de ‘vazio demográfico’ que somado ao imaginário de ‘território do atraso’ marcam a trama argumentativa dos estudos ambientais para legitimar a obra.

Por fim, ainda como conseqüência da falta de qualidade técnica, irresponsabilidade social e legal do EIA da segunda etapa, os elaboradores afirmam que “não foi constatada na área englobada pela pesquisa, a formação de grupos sociais que através da organização comunitária procurem conseguir superar os obstáculos existentes melhorando assim a qualidade de vida da área” (BRASIL, 2005, p. 149). Não obstante, como destacam as pesquisas de Braga (2010) e Alves (2012), as comunidades atingidas pela 2ª Etapa do PITR são marcadas pela organização comunitária e sindical desde 1995.

Percebemos assim, que a estratégia discursiva adotada pelos Estudos de Impacto Ambientais objetiva construir um território marcado pelo atraso-precariedade, sendo o perímetro irrigado uma política fundamental para ‘libertar’ a população local das imposições do clima e da sua incapacidade para enfrentar os desafios cotidianos. Estrutura-se, assim, uma matriz argumentativa de que o PITR apresentará mais aspectos positivos do que negativos, suavizando os impactos sociais decorrentes da sua implantação, como expressa o relatado a seguir:

Com a desapropriação haverá interrupção das atividades econômicas desenvolvidas na área do projeto, centradas na exploração dos cajueirais, de cultivos de subsistência e da pecuária extensiva, o que trará reflexos negativos sobre a geração de renda e a arrecadação tributária. Ressalta-se, no entanto, que estes impactos são pouco significativos, visto que a maior parte dos solos da área não são explorados em face da escassez de recursos hídricos e que a economia da área pauta-se pela agricultura semi-mercantil ou de subsistência, com grande parte da produção sendo destinada ao autoconsumo (BRASIL, 2005, p. 196).

Dentre os aspectos mais urgentes da implantação de empreendimentos de grande porte, estão os que dizem respeito à evacuação da população da área do projeto. No caso específico da 2ª Etapa do Projeto de Irrigação Tabuleiros de Russas estes efeitos, embora significativos, não atingem grande monta, visto que as terras alvo de desapropriação estão situadas numa área de tabuleiro, caracterizada pela escassez de recursos hídricos, a qual apresenta uma densidade demográfica bastante rarefeita (BRASIL, 2005, p. 194).

Fica claro que a política de perímetros irrigados é imbuída de um discurso salvacionista para as comunidades rurais atingidas, que finalmente terão acesso à água, terra, aos serviços públicos e serão inseridos no circuito produtivo moderno do agronegócio. Levar o (des)envolvimento é, assim, o objetivo do Perímetro Irrigado Tabuleiros de Russas.

Para DESenvolver, seguindo a leitura crítica de Porto-Gonçalves (2006), contudo, é preciso impor uma nova lógica de uso do território, uma lógica moderna, produtiva, racional e empresarial, isto é, usos do território que divergem da forma de apropriação construída pelas comunidades rurais por décadas. Por isso, para o DESenvolvimento chegar, é preciso DES-envolver, romper o envolvimento das populações com o seu território, expulsar, expropriar, desterrar os(as) agricultores e agriculturas que, segundo os parâmetros utilizados pelo Estado, via DNOCS, são atrasados, rudimentares e, por isso, não contribuem com a pauta de exportação, nem com superávit primário, já que produzem com foco na soberania alimentar, na autonomia, de acordo com os ritmos da natureza.

LÓGICAS DIVERGENTES DE USO E APROPRIAÇÃO DA NATUREZA: O TERRITÓRIO ENQUANTO ABRIGO

A imposição do Perímetro Irrigado Tabuleiro de Russas, considerando as duas etapas, atinge direta e indiretamente 30 comunidades rurais. Como relatamos anteriormente, a primeira etapa do projeto, iniciou em 1992, com a desapropriação de 22 comunidades rurais, que contavam com cerca de 780 famílias. Segundo depoimentos de lideranças comunitárias da região, não há registros de reassentamento construído pelo DNOCS para as famílias desapropriadas pela primeira etapa do projeto. Parte das famílias migrou para a periferia da zona urbana de Russas, algumas se restabeleceram no Distrito de Flores e na localidade do Jardim São José, as margens da BR-116, ambas no município de Russas. De acordo com BRAGA (2010)

 Segundo moradores de Lagoa dos Cavalos, a comunidade Lagoa da Várzea foi a única que resistiu à desapropriação do DNOCS durante a primeira etapa do projeto, porém, hoje vive em área de reserva legal da mesma, ou seja, não tem direito à propriedade da terra. Enquanto Mari, Germana, Massapê de Cima, Massapê de Baixo, Açude do Venâncios, Pedras, Sussuarana de Cima, Gibão e Lagoa do Arroz foram identificadas como comunidades desapropriadas nesta fase (BRAGA, 2010, p. 143).

Desta forma, para desvelar os conflitos territoriais e os custos sócio-ambientais decorrentes da instalação do perímetro, focaremos agora nosso olhar na instalação da segunda etapa, iniciada em 2008, que atinge direta e indiretamente oito comunidades rurais. Algumas comunidades como Bananeiras, Escondida, Córrego Salgado e Barbatão foram completamente desapropriadas, já Lagoa dos Cavalos, Peixe e Junco tiveram sua área reduzida, com a desapropriação de moradias e terras de produção de parte das famílias atingidas.

As comunidades começaram a se formar na década 1930, sendo compostas, em sua maioria, por membros da mesma família. Segundo Alves (2012):

Essas comunidades têm trajetórias de desenvolvimento entrelaçadas, são ligadas à mesma associação comunitária e compartilham os mesmos projetos produtivos. O conjunto caracteriza-se como uma rede de proximidade, envolvendo laços de parentesco, vizinhança, amizade e compadrio, além de certa homogeneidade socioeconômica (ALVES, 2012, p.148).

O uso e ocupação do território são marcados pela agricultura de sequeiro, com destaque para a produção do feijão, milho, mandioca, cajueiros, extração da cera de carnaúba e quintais produtivos repletos de frutas e hortaliças. Encontramos, também, o desenvolvimento da pecuária, com a criação de bovinos, ovinos, caprinos, galinha caipira e a apicultura.

A NOTA TÉCNICA Nº 05/09, produzida pelo antropólogo Sérgio Brissac, a pedido do Ministério Público Federal, nos ajuda a desvelar os modos de vida das comunidades atingidas:

 

Os modos específicos de vida e convivência com o semi-árido dos moradores da área em tela – como, por exemplo, a subsistência baseada na agricultura e coleta de castanha e cera de carnaúba – apontam para a existência de ‘conhecimentos, inovações e práticas gerados pela tradição’ que os capacitam a habitar no território em que se situam, ou seja, nesses ‘espaços necessários a reprodução cultural, social e econômica’ dessas populações que ora se encontram ameaçadas de remoção. O caráter tradicional salta mais aos olhos, por exemplo, em comunidades como a da Escondida, mas considero que o conjunto da área rural impactada pelo Projeto pode ser caracterizada como tradicional (MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL, 2009, p. 25).

Ao contrário do diagnóstico encontrando no EIA da Segunda Etapa, os estudos de Braga (2010) e Alves (2012), nossos trabalhos de campo e vivência nas comunidades, indicam um território repleto de vida, dinâmica e significados para as famílias que habitam o local. O território é visto enquanto abrigo, como meio de vida, com fortes laços de identidade, simbolismo, imbuído de características/racionalidades divergentes das descritas pelos estudos e discursos hegemônicos que justificam a intervenção territorial do DNOCS.

Seguindo as trilhas dos trabalhos realizadas por Braga (2010) e Alves (2012) podemos perceber que as comunidades, durante décadas, foram experimentando estratégias para conviver com o semiárido, num processo de co-evolução e reconhecimento das limitações e potencialidades do meio.

Por intermédio de grupos organizados, associações comunitárias e do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Russas, desde a década de 1980, as comunidades foram conquistando vários projetos sócio-produtivos, obras de infraestrutura, instalando experiências de convivência com o semiárido, diversificando a produção e fortalecendo a organização e os vínculos comunitários.

Na sequência apresentamos, sucintamente, algumas alternativas implantadas no território, que tornaram as comunidades reconhecidas nacionalmente, e até internacionalmente, como referência em estratégias de convivência com o semiárido:

  •  Apicultura

 Atividade iniciou em 1988, em condição de experimentação por um grupo informal de oito agricultores. Em 1989, houve a construção da Casa do Mel, com recursos da Secretaria de Agricultura do Estado do Ceará, instalada para beneficiar e agregar valor à produção.

Com a estruturação da atividade, o grupo de apicultores contou com apoio financeiro e técnico de diversas instituições como a Ematerce e Cáritas Regional de Fortaleza e Cáritas Diocesana de Limoeiro do Norte.

Segundo Alves (2012), a atividade apícola contava em 2010, com 260 colméias e uma produção anual média de 6,1 toneladas, configurando-se como uma das principais atividades econômicas das comunidades, sendo o mel vendido in natura para atravessadores, que exportavam para Alemanha, ou engarrafado para o mercado local e regional.

  •  Banco de Sementes Comunitário

O banco de sementes é outra estratégia adotada pelos agricultores(as) para conviver com o semiárido, sendo composto por uma unidade de armazenamento e um campo comunitário, onde são plantadas, anualmente, as sementes que deverão ser estocadas para as próximas safras (ALVES 2012).

Como destaca Alves:

 O banco de sementes é, portanto, um instrumento de garantia da soberania alimentar, da autonomia dos agricultores, de conservação da biodiversidade do Semiárido, do meio ambiente e da saúde dos agricultores no processo de produção e no consumo. Além disso, serve de espaço de conscientização sobre problemas causados por queimadas, uso de agrotóxicos, ao mesmo tempo em que estimula o uso de inseticidas biológicos e naturais (ALVES, 2012, p. 169).

A iniciativa existe desde 1988, contou com apoio da organização não governamental Esplar, que desenvolvia ações para preservação de sementes crioulas. Além do campo comunitário, os(as) agricultores(as) desenvolveram intercâmbios para troca de sementes com outras comunidades, garantindo o resgate de sementes e a diversificação do banco genético disponível às comunidades. O banco de sementes contava com 12 sócios no ano de 2012.

  •  Horta Comunitária e Grupo de Jovens

Segundo Alves (2012), a experiência teve início em 1988, com objetivo de implantar uma horta comunitária, sob a responsabilidade dos jovens da comunidade, às margens da Lagoa dos Cavalos, localizada na comunidade de mesmo nome. A atividade contou com apoio técnico da Ematerce e com recursos do Programa de Apoio ao Pequeno Produtor Rural (PAPP), do Governo Federal.

A partir do ano 2000, o grupo passou a animar outras atividades de cunho religioso, social e político, como destaca Alves (2012):

 

Tarefas estratégicas, cruciais para a sobrevivência dos moradores, têm sido assumidas pelo Grupo de Jovens, como é o caso da formação dos agricultores sobre o gerenciamento dos recursos hídricos e a condução do projeto de apicultura, carro-chefe das atividades produtivas locais. É também de sua responsabilidade a organização do plantio de mudas nativas, inclusive para o reflorestamento do serrote localizado no limite com a comunidade de Tapera.  Tal iniciativa promove a melhoria da florada para as abelhas, contribuindo para o aumento da produção de mel e o melhor resultado econômico. Além dos méritos da ação de recuperação de uma área em processo de degradação, cabe destacar a repercussão positiva que este comportamento pode proporcionar na Comunidade como um todo em relação à consciência ambiental (ALVES, 2012, p. 171).

  •  Tecnologias sociais e produtivas adaptadas ao semiárido

A partir da década de 1990, os(as) agricultores(as) avançaram nas estratégias de Convivência com o Semiárido. A comunidade de Lagoa dos Cavalos, Junco, Córrego Salgado e Barbatão, que possuem interligações familiares e produtivas, conquistaram algumas tecnologias sociais e experiências diferenciadas de produção adaptadas à dinâmica do bioma local.

A ONG Cáritas Brasileira teve um papel fundamental em animar os(as) agricultores(as), que, em parceria com outras ONG´s, instituições públicas e redes de intercâmbio, implementaram um conjunto – articulado – de experiências decisivas para a segurança hídrica, autonomia e soberania alimentar da população local. Entre as experiências destacamos as listas no quadro 2:

Quadro 2: Experiências de Convivência com Semiárido adotadas pelas comunidades rurais.

Experiência Objetivo
Cisternas de Placa Sistema de armazenamento de água com capacidade para 16 mil litros, fundamental para o abastecimento humano. A tecnologia é uma alternativa para conviver com a escassez hídrica do semiárido, contribuindo para autonomia da população em relação à indústria da seca.
Barragem Subterrânea com agroflorestação Sistema de represamento de águas subterrâneas, construída estrategicamente em locais com subsolo rochoso e leito de aluvião. No semiárido, o sistema apresenta vantagens por diminuir a evaporação da água, já que a mesma fica armazenada numa profundidade superior a um metro. A água da barragem é aproveitada para o cultivo de feijão, mandioca, capim elefante e algumas fruteiras.
Ovinocultura O projeto foi criado em 1998. Iniciou com a criação coletiva de 80 animais, com oito famílias envolvidas. Em 2012, o grupo contava com seis famílias e um plantel de 200 animais.
Sistema Agrosilvopastoril Sistema caracterizado pela integração entre plantas lenhosas perenes, culturas alimentares, vegetação de caatinga e pastagens. O manejo do sistema fornece alimento para os animais, para os produtores e energia, por meio do manejo sustentável da lenha.
Outras experiências As comunidades contam também com uma unidade de raspa de mandioca e estratégias de silagem, alternativa que busca garantir alimentação para os rebanhos durante o período de estiagem.

Fonte: BRAGA (2010) e ALVES (2012), adaptado pelos autores.

Invisibilizadas, todas as experiências relatadas não são citadas/(re)conhecidas nos estudos de impactos ambientais, utilizados no processo de licenciamento ambiental, e no discurso do Estado. Toda a história de luta das comunidades para produzir um território de convivência com o semiárido foi invisibilizado no diagnóstico sócio-ambiental do EIA da segunda etapa do perímetro irrigado. O ‘esquecimento’, intencional, reflete a oposição entre território enquanto abrigo e território enquanto recurso, de terra de trabalho e terra de negócio e expressam uma disputa territorial entre Estado e comunidades rurais.

Como destaca Braga (2010):

 

Após a caracterização do território na perspectiva do EIA, pode-se visualizar o mesmo local com outro olhar. A partir de análise quantitativa da vida, tem-se um lugar sem água de qualidade, sem pessoas saudáveis, sem atividades produtivas, sem associação comunitária, sem alternativas tecnológicas de convivência com o semiárido e sem articulação e participação de organizações não governamentais (BRAGA, 2010, p. 130).

Já segundo Alves (2012) a implantação da Segunda Etapa impõe o risco de eliminar décadas de experimentação e convivência com o semiárido:

 

Com efeito, a implantação de tal proposta provocaria a perda de todas as áreas de cultivo e criação, inviabilizaria a proposta de Convivência que envolve a preservação ambiental e a história de luta e saberes. Eliminaria a própria organização comunitária e a autonomia relativa que as famílias mantêm atualmente. Com o aniquilamento de suas condições de reprodução e mesmo de subsistência, não restaria às famílias uma opção diferente de tornar-se mão de obra para o empresariado a se instalar no Perímetro (ALVES, 2012, p. 179).

 

Foram anos de (re)conhecimento do semiárido, de implementação de alternativas de convivência, com aporte financeiro público e de ONG´s, que proporcionaram efeitos na preservação e conversação da natureza, autonomia, soberania alimentar e reforçaram uma lógica de apropriação do território marcada pela gestão coletiva dos bens naturais, respeito à capacidade de suporte do ambiente, com práticas que promovem a saúde da população local. Contudo, a expansão da fronteira agrícola, bancada pelo Estado brasileiro, impõe, agora, outra lógica de uso do território. Como já aprendemos em outros estudos sobre perímetros irrigados, tal técnica de uso e ocupação do semiárido é incompatível o modo de vida camponês e sua instalação dispara conflitos e, na maioria dos casos, desestruturam territórios camponeses.

O MODUS OPERANDI DO DNOCS E OS CONFLITOS TERRITORIAIS EM CURSO: QUEM FICARÁ COM OS REJEITOS E COM OS PROVEITOS DO PROJETO?

 […] o DNOCS tem100 anos de história, mas por onde ele passa pode ir atrás que ninguém, assim, tem um seu lado bom, mas tem o ruim acho que tem mais que o lado bom, tá entendendo, porque é um órgão que machuca muito as pessoas, num sei como e que eles dizem que quer deixar, porque só vai fazendo as coisas na base da pressão… pressionando pra que eles venham fazer alguma coisa, eu num sei, eles num falam  (Antônio Augusto, relatando os trâmites da negociação com o DNOCS) (BRAGA, 2010, p. 147, grifo nosso).

[…] a gente deixa aqui a nossa preocupação, a nossa indignação com tudo isso que está acontecendo, preocupação porque a gente não tem nada claro do que está acontecendo e do ainda virá a acontecer, é indignação pelo fato de muitas coisas estarem acontecendo e as coisas estarem bastante avançadas e a gente não compreender o que está acontecendo porque nenhuma família foi indenizada até agora e mesmo assim já estão bastante encaminhadas (Tereza, líder da comunidade Lagoa dos Cavalos, em Audiência Pública em agosto de 2009) (BRAGA, 2010, p. 148, grifo nosso).

Como podemos perceber nos relatos acima, extraídos da pesquisa da Braga (2010), a intervenção territorial, coordenada pelo DNOCS para fins de desapropriação das oito comunidades rurais, é um processo marcado por forte tensão e conflito social.

O modus operandi do DNOCS no processo de desapropriação das famílias atingidas é caracterizado pelo autoritarismo, falta de informação, transparência, participação e, ainda, pela produção de informações perversas, que buscam intimidar os desapropriados e/ou conquistar a confiança para minar a resistência comunitária ao projeto.

As oito comunidades rurais incluídas na poligonal do projeto receberam a informação da desapropriação com surpresa, já que não houve um processo participativo e dialogado de exposição do projeto para a população local. Segundo relatos coletados nos trabalhos de campo, o DNOCS não promoveu nenhuma reunião pública com todas as comunidades atingidas para socializar e debater a proposta de intervenção territorial.

Frente à total falta de informação e comunicação, as comunidades organizaram a Comissão de Resistência do Tabuleiro de Russas, composta por agricultores(as) atingidos(as) pela expansão do projeto irrigado. A Comissão passou a provocar constantes reuniões com o DNOCS, promover audiências públicas e manifestações de rua que expressavam seu desacordo e resistência ao processo de desapropriação.

A experiência vivida pelas comunidades rurais atingidas pela da primeira etapa, que foram literalmente expulsas das suas terras, sendo obrigadas a migrar para outras localidades e para periferia do município de Russas, serviu de alerta para a Comissão de Resistência, que já conhecia, em linhas gerais, as consequências da instalação do perímetro.

As comunidades tentaram, inicialmente, demonstrar inviabilidade da expansão da segunda etapa, já que dos 10.765 hectares da primeira etapa, no ano de 2008, apenas 23% da área total estavam ocupados, conforme análise da figura 1. Segundo laudo pericial produzido pelo Ministério Público Federal, “a sub-utilização da 1ª etapa do projeto já coloca questões acerca da razoabilidade da expansão de um projeto que terá alto custo sócio-ambiental” (MPF, 2009, p. 2). O DNOCS, contudo, mantinha a decisão de avançar com as obras. Restou às comunidades a estratégia de minimizar os impactos e garantir seus direitos no processo de desapropriação.

 Figura 1. Evolução da área plantada da 1ª Etapa do PITR.

figura 1

 Fonte: Distar.

Com a falta de transparência e a dificuldade de acesso às informações completas, claras e objetivas, as comunidades organizaram três audiências públicas (duas em 2008 e uma 2009), que contaram com a participação das famílias atingidas, de movimentos sociais, de organizações não-governamentais, do Ministério Público Federal (Comarca de Limoeiro do Norte), de Universidades e de técnicos do DNOCS.

Mesmo com essa estratégia de pressão, as audiências públicas eram pouco produtivas, não garantiam acesso à informação e não encaminhavam os problemas relatados pelas famílias atingidas, já que o DNOCS, como tática, sempre enviava técnicos sem poder de decisão ou que dominavam apenas parte das informações demandadas pelas comunidades.

Com o início das obras de engenharia, notadamente dos canais que transportam água para irrigação, os conflitos entre DNOCS e comunidades se tornaram mais intensos, visto que a construção iniciou sem que os desdobramentos legais da desapropriação tivessem sidos esclarecidos ou resolvidos como, por exemplo, os valores e pagamentos das indenizações e a construção do reassentamento.

O DNOCS não cumpriu o rito processual básico da justa e prévia indenização para iniciar as obras. As famílias relatam que o órgão usou de diversas estratégias para ‘entrar’ nas terras atingidas, visto que os trâmites administrativos para pagamento de indenizações e reassentamento iriam ‘atrasar’ o cronograma estabelecido.

Na nota técnica produzida a pedido do Mistério Público Federal podemos apreender o relato do antropólogo Sergio Brissac, que, em suas reuniões com as comunidades, sistematizou algumas estratégias utilizadas pelo DNOCS para avançar com as obras do Canal:

 

Na reunião foram apresentadas muitas reclamações quanto ao modo de atuar do DNOCS e das empreiteiras contratadas. Segundo os participantes da reunião, as autorizações obtidas dos moradores, para que as obras passem pelas terras deles, que ainda não receberam as indenizações devidas, foram conseguidas através do oferecimento de ‘favores’: alguns rolos de arame, empregos para parentes, trabalhos com trator, ou então um ‘dinheirinho a mais’. De acordo com Raimundo Maia, funcionários da Andrade Gutierrez teriam lhe oferecido R$ 10.000,00 (dez mil reais) e Wanderley Nogueira, um dos proprietários da WN Engenharia teria lhe ofertado R$ 15.000,00 (quinze mil reais), que ele teria recusado. Com estratégias desse tipo, o DNOCS e as empreiteiras estariam conseguindo adiantar a realização das obras do Projeto de Irrigação, mesmo antes do pagamento das indenizações, que ainda depende da regularização dos imóveis em cartório (MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL, 2009, p. 11, grifo nosso).

 

Na reunião também houve denúncia acerca da maneira como as empreiteiras contratas pelo Dnocs têm conseguido entrar nas propriedades dos moradores, antes do pagamento da indenização: ‘eles entram é com gorjetas, dando emprego aos parentes dos moradores, máquina para cortar cajueiro, dinheiro’. Afirmaram também que Wanderley Nogueira, sócio das WN Engenheria, mandou que os funcionários de sua empresa passassem máquinas para melhorar a estrada de Bananeiras à Lagoa do Peixe. O serviço foi gratuito para as comunidades, mas faz com que eles suponham que foi uma estratégia para obter apoio dos moradores (MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL, 2009, p. 19, grifo nosso).

 

Nos dois primeiros relatos extraídos do laudo do Ministério Público Federal, percebemos o primeiro conjunto de estratégias do DNOCS: o suborno; a tentativa de conquistar a confiança dos moradores oferecendo emprego aos familiares que ‘ajudassem’; pagamentos ‘suspeitos’; abertura de estradas, quem em tese iriam beneficiar as famílias atingidas. Interessa perceber o papel das empresas privadas, que executam a obra de engenharia, assumindo a função do Estado no diálogo com as comunidades atingidas.

A comunidade de Bananeiras foi a primeira a ser atingida pela construção do Canal principal, responsável pela distribuição de água para o perímetro irrigado. Frente ao avanço das obras e as indefinições quanto à indenização e reassentamento, o DNOCS continuava a pressionar as comunidades para cumprir o cronograma de instalação dos sistemas de engenharia.

Em 2010, a Comissão de Resistência oficializou junto ao Ministério Público Federal denúncia sobre a continuidade das práticas utilizadas pelo DNOCS para ‘entrar’ nas terras dos atingidos, como podemos observar no relato extraído do ofício encaminhado ao MPF:

 

O casal Evandro Martins e Lucimar Dias mora na Comunidade Bananeiras, onde a construção do canal está bem avançada. Como sua casa está localizada exatamente na área onde passa o canal e ainda não foi indenizada, começou a ser pressionado pela empreiteira para permitir o avanço do mesmo. Inicialmente, resistiu, mas, por pressão da empresa e de familiares que residem na área (os pais já haviam cedido e recebido, inclusive, da empresa R$ 700,00 (setecentos reais) por 16 pés de cajueiros, acabou cedendo: “depois de eu ter recebido vários recados e não ter respondido a nenhum deles, a empresa me procurou para fazermos um acordo. Me senti pressionado, já que meus pais e meus irmãos haviam aceitado a construção do canal e eu estava no meio. Não podia fazer muita coisa. Eles queria pagar pela minha casa, mas como pedi R$ 20.000,00 (vinte mil reais) por ela, eles disseram que não podiam pagar e também não seria necessário agora ter que tirar a casa, mas somente a cisterna. Perguntaram quanto tinha sido gasto para a construção da cisterna e eu falei que tinha sido mais ou menos uns R$ 1.5000,00 (mil e quinhentos reais), na época. Mas disse que só me desfaria do bem se me pagassem R$ 2.000,00 (dois mil reais) e construíssem outro depósito de água. A empresa aceitou o acordo, pagou o valor e construiu o depósito”, diz Vandro, como é conhecido Evandro Martins. Segundo a família, o discurso da empreiteira é que, de acordo com o DNOCS, uma vez que o dinheiro referente a indenização esteja depositado em juízo, eles podem fazer (derrubar) o que quiserem, exceto com a casa da família. “Isso é verdade”? pergunta (CÁRITAS DIOCESSANA DE LIMOEIRO DO NORTE, CE. 2009, grifo nosso).

 

A denúncia da Comissão de Resistência junto ao MPF deixa claro outro bloco de estratégias utilizado pelo DNOCS para avançar com as obras: a pressão, a violência psicológica, a fabricação de informações perversas, a produção de conflitos entre os membros as famílias atingidas.

Quando finalmente as indenizações começaram a ser pagas, as famílias da comunidade de Bananeiras e Escondida foram as primeiras a receber seus direitos. Com isso, teve início outra fase do conflito: as pressões impetradas pelos servidores do DNOCS às famílias com indenizações pagas para que deixassem suas casas o mais rápido possível, pois a obra precisava avançar.

É preciso esclarecer que no processo de desapropriação existem três grupos de atingidos. Os grupos são classificados de acordo com o laudo de avaliação da terra e benfeitorias. (1) aqueles que possuem direito a reassentamento, (2) aqueles que podem optar entre reassentamento ou indenização e (3) aqueles que só podem receber indenização.

Com o pagamento das indenizações, as famílias que optaram por este direito ou só tinham esta escolha começaram a deixar suas casas. Os moradores das comunidades de Bananeiras e Escondida, que tem sua área totalmente incluída na poligonal de desapropriação, foram os primeiros expropriados da Segunda Etapa. Parte da comunidade, formada, em sua maioria, por membros da mesma família, se restabeleceu numa localidade intitulada de Fazenda Maia, enquanto outros moradores se deslocaram para a comunidade do Cipó, ambas localizadas no entorno da poligonal de desapropriação do Tabuleiro de Russas.

Com o esvaziamento das comunidades, o público enquadrado da política de reassentamento passou a vivenciar novos problemas: os pequenos comércios foram fechados, o transporte escolar não buscava mais os estudantes que continuavam na área e o esvaziamento gerou uma sensação de insegurança entre os remanescentes. Fatos que podem ser observados na denúncia feita pela Comissão de Resistência ao Ministério Público Federal:

 

Aduziu a representante: QUE foi firmado um TAC com participação do MPF, DNOCS, em 18/08/2011, pelo qual o DNOCS se comprometeu a reassentar as comunidades afetadas pelo Projeto Tabuleiro de Russas; QUE até o presente momento as famílias das Comunidades de Bananeiras e Escondidas já foram desapropriadas, já tendo deixado o local apenas as que foram efetivamente indenizadas; QUE as outras famílias que têm direito a reassentamento estão isoladas na área sem poderem produzir, sem acesso a estruturas como transporte, comércio etc.; QUE o reassentamento das Comunidades de Bananeiras e Escondidas será realizado na área denominada REASSENTAMENTO CIPÓ, QUE a situação foi reconhecida pelo próprio DNOCS por meio do Engenheiro Supervisor do Projeto Tabuleiro de Russas, Sr. Felipe Cordeiro (Memo nº 023/2011 – FISCALIZAÇÃO RUSSAS, ora anexado), o qual solicitou providência ao Diretor de Infraestrutura hídrica Dr. Berlan Cabral; QUE estando as comunidades prejudicadas isoladas, se faz necessário que o DNOCS forneça no mínimo 01 cesta básica mensal por família, notadamente se considerado que estão impossibilitadas de produzir e plantar; QUE o início da obra do REASSENTAMENTO CIPÓ se faz igualmente necessário, portanto, até agora nada foi feito, solicitando a comunidade, diante das irregularidades acima apontadas, providência deste MPF (MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL, TERMO DE REPRESENTAÇÃO Nº 07/2011, grifo nosso).

 

Percebemos na denúncia acima, que o DNOCS, na execução das obras da Segunda Etapa, tem como prioridade construir as obras de engenharia, isto é, a preocupação primordial é com o avanço do concreto.

Mesmo sem definição da política de reassentamento, os caminhões e tratores continuam cortando as terras, fragmentando e isolando as comunidades. O canal continua avançando, tornando-se vizinho de diversas casas que aguardam o reassentamento. A poeira, o barulho das máquinas, a mudança nas estradas, o desmatamento, a fuga da fauna, conformam a nova dinâmica da paisagem nas comunidades atingidas. Aos poucos as famílias que receberam as indenizações foram deixando suas casas, que em seguida foram demolidas pelo DNOCS, intensificando o isolamento dos(as) agricultores(as) que aguardam o reassentamento.

Não podemos esquecer que a morosidade do órgão em construir o reassentamento e pagar as indenizações impôs diversas consequências para as famílias que permanecem na terra. Conforme relatos colhidos em campo, desde que as obras começaram a cercar as comunidades, os(as) agricultores(as) passaram a conviver com um dilema: investir ou não na produção agropecuária. Como o laudo de avaliação das terras já tinha sido elaborado, qualquer investimento implicaria em prejuízos, visto que não seria refeito o cálculo da indenização.

Com a incerteza da data de pagamento da indenização e/ou da conclusão do reassentamento parte dos agricultores deixou de investir na produção e de cultivar plenamente a terra, pois temiam que, a qualquer momento, o DNOCS efetivasse a sua desapropriação direta. Os quatro anos de espera e incertezas, pós-laudo de avaliação das terras, implicou em redução drástica da produção agrícola nas comunidades, impondo riscos à segurança e soberania alimentar nas comunidades.

Percebe-se, com isso, que a vida das famílias, a manutenção das atividades econômicas dos atingidos, o acesso à alimentação e a segurança são preocupações que não fazem parte do cronograma físico-operacional da obra, isto é, dos planos de instalação da segunda etapa do PI Tabuleiros de Russas.

No processo de desapropriação outro ponto central de conflito com o DNOCS diz respeito ao modelo de reassentamento proposto pelo órgão. No plano inicial, o reassentamento das famílias seria composto apenas por casa e infraestutura de uso comum (estradas, praça, escola, etc), isto é, as famílias reassentadas não teriam terra para produção.

O órgão tinha como plano desapropriar moradias e terra de produção de oito comunidades, formadas majoritariamente por agricultores(as), e sua política de reassentamento só previa a reconstrução de casas, sem direito à terra de produção. Segundo o DNOCS, os desapropriados, sejam os indenizados ou reassentados, deveriam participar de um processo de seleção e se apresentassem perfil para irrigantes, deveriam pagar por um lote de 8 hectares, sua infraestrutura de irrigação e todos os custos de manutenção: energia e taxa mensal de administração. Ou seja, os expropriados deveriam se submeter à política de irrigação, com sua lógica técnica, jurídica e política.

O próprio EIA reconhece que as famílias desapropriadas correm sérios riscos de não voltarem a ter terra de produção, visto que a indenização paga é irrisória para aquisição de novas áreas com qualidade e próximas ao local de moradia.

 

Quanto ao processo desapropriatório, os grandes proprietários por possuírem enormes extensões de terra dotadas de benfeitorias, certamente receberão indenizações, que via de regra, os colocam em condições e imediatamente aplicar esse capital em bens equivalentes ou nas atividades econômicas que bem lhes aprouver, devendo efetuarem o autoreassentamento. Bem diversa, no entanto, é a situação dos pequenos e médios proprietários de terra e dos moradores que trabalham nas grandes propriedades. Para os primeiros, a quantia recebida é em geral baixa, pois terras altas e secas se revestem de valor de venda relativamente reduzido. Além disso, estes muitas vezes têm de custear suas manutenções no período que antecede a transferência, ou mesmo quando instalados nos novos locais, mais ainda sem condições de tirar seus sustentos da produção. Por outro lado, a implantação do projeto de irrigação, aliado ao aumento da demanda por terras provoca uma elevação do valor destas na região circunvizinha. Desta forma, a aquisição de um novo pedaço de terra com características similares ao anteriormente possuído fica normalmente inviabilizada dada à baixa indenização recebida (BRASIL, 2005, p. 195, grifo nosso).

 

Dado que uma parcela da população residente na área do projeto não será qualificada como irrigante, pode-se prever o deslocamento desta para os centros urbanos próximos ou para outras regiões. Haverá abalos ou até mesmo ruptura de relações familiares e sociais e é previsível a geração de tensão social face às incertezas criadas pelo processo desapropriatório, havendo o temor dos valores pagos pelas indenizações não serem compatíveis com os valores reais dos bens perdidos. Haverá, ainda, aumento da demanda por habitações elevando o preço destas, e as sedes municipais próximas sofrerão pressão sobre a infra-estrutura de serviços públicos existentes (BRASIL, 2005, p. 196, grifo nosso).

 

Assim, a análise do EIA deixa claro que a maior carga de impactos do processo desapropriação recairá sobre os(as) pequenos(as) agricultores(as). Aos mais pobres, desterrados, sobrará a alternativa de engrossar o exército industrial de reserva, contribuindo para alimentar o mercado de trabalho nas cidades e/ou nas empresas do agronegócio atraídas para o perímetro irrigado.

Nas citações acima é possível apreender, ainda, que o discurso do DNOCS, de que os desapropriados poderão adquirir um lote irrigado, repetido em várias reuniões de negociação, é contestado pelo próprio EIA ao afirmar que “parcela da população residente na área do projeto não será qualificada como irrigante”.

Igualmente, não podemos olvidar os ensinamentos extraídos das experiências de instalação de outros perímetros irrigados no Nordeste que alertam que apenas uma pequena parcela do desapropriados conseguem ‘passar na seleção’ e acessam um lote irrigado. Outra lição que aprendemos com a experiência concreta dos demais perímetros já instalados é que a parcela dos(as) agricultores(as) que acessam o lote não se adaptam a nova lógica de produção e terminam vendendo a propriedade.

Na verdade, fica cada vez mais claro, apesar do discurso perverso do DNOCS de inclusão dos desapropriados, que os atuais perímetros irrigados não são idealizados para incorporar as famílias atingidas, pois não comportam outra dinâmica de produção que não seja a da racionalidade empresarial do agronegócio, que qualifica o território enquanto recurso e a terra enquanto negócio. Cientes de que o perímetro é um projeto excludente, as famílias atingidas passaram a exigir outra concepção de reassentamento, tornando-se o ponto de pauta principal do processo de luta e resistência.

Em agosto de 2009, a pedido da Comissão de Resistência, foi realizada uma audiência pública no distrito do Peixe (município de Russas), que contou com a intermediação do Ministério Público Federal, estando o DNOCS representado por um técnico sem poder de decisão. A audiência tinha como objetivo esclarecer as várias dúvidas provocadas pela falta de transparência do órgão, e entre os encaminhamentos, foram lançadas duas propostas: (1) que o MPF produzisse um estudo antropológico da área para subsidiar as famílias atingidas com informações técnicas, contribuindo com o fortalecimento do processo de resistência e (2) que a Comissão de Resistência iniciasse um processo coletivo de construção de uma contraproposta de reassentamento, com o objetivo de subsidiar o processo de negociação com o DNOCS.

O estudo antropológico foi realizado pelo antropólogo Sergio Brissac, a pedido do MPF, sendo entregue em setembro de 2009. Entre as conclusões principais do laudo pericial destacamos:

 

O custo sócio-ambiental da Segunda Etapa do Projeto de Irrigação Tabuleiros de Russas apresenta-se extremamente elevado, como se pode depreender do exposto até aqui. A possível remoção dos moradores das comunidades de Escondida, Bananeiras, Junco, Córrego Salgado e Barbatão, assim como a permanência das comunidades de lagoa dos Cavalos, Sussuarana e Lagoa do Peixe – entretanto com o ‘contorno’ do Projeto de Irrigação passando próximo às terras de cultivo e moradia dessas comunidades – todo esse quadro significa um risco potencial de elevada magnitude aos moradores dessas comunidades – tanto aos que teriam de sair quanto aos que permaneceriam, mas estariam sujeitos a impactos relativos à sua saúde, devido à provável contaminação por agrotóxicos utilizados pelo modelo de agricultura das empresas que utilizam as terras dos Perímetros irrigados do DNOCS (MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL, NOTA TÉCNICA Nº 05/09, 2009, p. 23).

 

O laudo reforça que a maior carga de impactos do projeto recairá sobre as comunidades rurais e traz a necessidade de ampliar o conceito de atingido, indo além dos desapropriados que perderam seu território e terra de produção, incluindo, igualmente, as famílias que irão permanecer das bordas do perímetro irrigado, visto que o modelo de produção, calcado no uso de agroquímicos, contamina a água, o solo, o ar, e os trabalhadores.

Pari passu à realização do laudo antropológico, a Comissão iniciou o processo de construção da proposta de reassentamento, que foi debatido e aprovado numa grande assembleia dos atingidos(as), realizada no dia 05 de fevereiro de 2010, na comunidade do Peixe, município de Russas.

A Comissão de Resistência adotou as seguintes diretrizes para elaboração da contraproposta de reassentamento:

 

O projeto consiste na definição de uma área de reassentamento para as famílias atingidas (1) que atenda às suas necessidades: moradia, trabalho e produção, água, infra-estrutura, preservação ambiental, (2) que leve em conta o desenvolvimento das comunidades e as gerações futuras, (3) que possibilite o desenvolvimento de uma agricultura familiar sustentável sem utilizar agrotóxicos, sem agredir o meio ambiente e sem prejudicar a vida humana, (4) que respeite a cultura tradicional dessas comunidades e (5) que garanta às famílias e às o direito de serem sujeito de suas vidas e história (CÁRITAS DIOCESSANA DE LIMOEIRO DO NORTE, CE. PROJETO DE REASSENTAMENTO, 2009, p. 2).

 

A área proposta para o reassentamento totalizava 1.442 hectares, extensão que, segundo as comunidades, contemplaria terra para moradia e produção.

Na contraproposta, as comunidades exigiam a criação de uma Zona de Amortecimento, que consiste numa faixa com vegetação nativa, com a função de barreira de proteção entre o perímetro irrigado e a área do reassentamento. A proposta indicavam, também, que a área de Reserva Legal do perímetro ficasse disposta ao redor da Zona de Amortecimento para ampliar a proteção das comunidades em relação aos riscos ambientais desencadeados pela operação da Primeira e Segunda Etapa do Tabuleiros de Russas.

O projeto elaborado foi protocolado junto à Direção Geral do DNOCS, que recebeu a contraproposta com surpresa. Em reunião, os representantes do órgão afirmaram que o reassentamento pensando pelas comunidades era inviável, já que, ocupava 40% da área projetada para a segunda etapa do perímetro Tabuleiros de Russas. Em maio de 2010, em resposta a contraproposta elaborada pelas comunidades, o DNOCS apresentou o documento intitulado Plano de Reassentamento, que expressava claramente a sua concepção de reassentamento:

 

No que se refere à área proposta para o Reassentamento, foram indicadas três áreas, todas localizadas nas proximidades dos núcleos urbanos existentes; Cipó, Lagoa dos Cavalos e Peixe, para implantação do Projeto. As áreas foram apresentadas às Comunidades e acatadas com áreas ideais para a construção dos núcleos. Apresentam plena integração física com os núcleos existentes, boa conformação topográfica, solos aptos para construção e ainda permitem, pela dimensão futura expansão (BRASIL, PLANO DE REASSENTAMENTO, 2010, p. 20).

 

Ressalte-se que a pré-seleção do público identificou 57 famílias “reassentáveis”, ou seja, com valor inferior a R$24.000,00. Com relação a participação no processo seletivo dos lotes agrícolas, todas as famílias atingidas pela Obra, independente do valor de indenização, poderão realizar inscrição (BRASIL, PLANO DE REASSENTAMENTO, 2010, p. 20, grifo nosso).

 

Como podemos perceber o DNOCS manteve o entendimento de que as famílias desapropriadas teriam direito apenas ao reassentamento da moradia, e para garantir a terra de produção, deveriam participar do processo seletivo dos lotes agrícolas. Caso fossem selecionados, os postulantes a irrigante deveriam arcar com todos os custos de aquisição e manutenção do lote, de acordo com as regras estabelecidas na Lei de Irrigação[2]. O DNOCS, assim, em nada alterou sua proposta, já que reassentamento da casa e garantia de participação da seleção são direitos assegurados na legislação que dispõe sobre o tema.

Frente à inflexibilidade do órgão, as comunidades organizaram um abaixo-assinado que foi firmado pelas famílias atingidas. O documento reafirmava o entendimento de que o reassentamento deveria contemplar a terra de produção e mecanismos que garantissem a conservação ambiental, a saúde e a soberania alimentar dos reassentados, como podemos observar no texto extraído do abaixo-assinado:

Dentre outros pontos a reivindicação fundamental tem a ver com a garantia de uma área de produção para as famílias desapropriadas, não enquadrada na Lei de Irrigação, dados os custos de infra-estrutura e de manutenção e as experiências fracassadas de pequenos agricultores nos perímetros irrigados. Segundo o projeto apresentados pelo DNOCS, o reassentamento das famílias diz respeito exclusivamente ao núcleo habitacional e a infra-estrutura urbana. Com relação à área de produção, elas teriam que se submeter a um processo de seleção dos lotes, de acordo com a Lei de Irrigação. E aqui está o ponto crucial e decisivo de nossa divergência com o DNOCS e de nossa reivindicação.

Para as famílias desapropriadas, agricultores familiares, é de fundamental importância a garantia de uma área de produção enquadrada numa política de reassentamento e não na política de irrigação.

Sendo assim, reafirmamos que o Plano de Reassentamento deve contemplar as seguintes reivindicações:

  1. Elaboração de um plano de reassentamento para as famílias desapropriadas que contemple, além do núcleo habitacional e da infra-estrutura urbana, área de produção (4 ha por família) com infra-estrutura de irrigação, garantindo a soberania alimentar das famílias.
  2. Enquadramento dessas famílias numa política de reassentamento e não na Lei de Irrigação, frente aos custos de infra-estrutura e manutenção, fomentando uma política de tratamento especial para os agricultores reassentados.
  3. Acompanhamento técnico continuado e capacitação para os pequenos produtores, garantindo uma transição da agricultura de sequeiro para agricultura orgânica e irrigada.
  4. Acesso ao crédito assistido para iniciar a transição.
  5. Para as famílias que terão apenas a sua área de produção desapropriada que possam ser incorporadas ao reassentamento, no que se refere a área de produção, garantindo sua soberania alimentar.
  6. Garantia de uma zona de amortecimento, entre as comunidades e os lotes convencionais, para minimizar os impactos dos agrotóxicos na saúde ambiental e das famílias.
  7. Garantia que as comunidades que possuem cisternas tenham essa benfeitoria reposta no reassentamento (ABAIXO ASSINADO: PELA GARANTIA DOS DIREITOS DAS COMUNIDADES ATINGIDAS PELA 2ª ETAPA DO PROJETO DE IRRIGAÇÃO DE RUSSAS, 2010).

A divergência entre o que se entende por reassentamento expressa a disputa territorial entre DNOCS e comunidades atingidas. Para as famílias atingidas o projeto irrigado representa uma ameaça, impondo vários riscos socioambientais. A contraproposta de reassentamento elaborada pelas comunidades antevê as conseqüências da desapropriação e da operação do projeto com a instalação do agronegócio. Com base na proposta das famílias atingidas é possível extrair as seguintes avaliações sobre a instalação do PI Tabuleiros de Russas:

(1) A instalação do perímetro ameaça a agricultura camponesa, as experiências de convivência com o semiárido e promovem a insegurança alimentar. Como?

– A desapropriação via indenização, por seu baixo valor, impossibilita a aquisição de novas terras para produção. Com a instalação do perímetro, o mercado de terras na região passa por um processo de valorização, impossibilitando a aquisição de uma área com tamanho e fertilidade que garanta a reprodução da família camponesa. Não podemos olvidar, também, que o DNOCS para a instalação do perímetro irrigado Tabuleiros de Russas selecionou as melhores manchas de solo da região, restando, nas proximidades, apenas as áreas ‘pedras’ e ‘brejos’, impróprias para agricultura, como expressam os(as) agricultores(as).

– A desapropriação via política de reassentamento, na proposta do DNOCS, tampouco garante acesso à terra de produção, já que para o órgão tal política se resume a construção de casas e infraestrutura de uso comum.

– O processo de ‘seleção’ para disputar um lote no perímetro irrigado é outro desafio. As experiências dos demais perímetros do Nordeste ensinam que apenas uma pequena parcela dos desapropriados será selecionada como irrigante, pois os critérios utilizados pelo DNOCS exigem um perfil de pequeno produtor empreendedor, adaptado à racionalidade capitalista do agronegócio. A história dos perímetros irrigados demonstra que o custo de manutenção do lote irrigado, o aquecimento do mercado de terras e a subordinação ao agronegócio pressionará o(a) agricultor(a) camponês(a) a vender seu lote, implicando num segundo processo de expropriação.

É por isso que as comunidades exigem uma área de 4ha por família, não enquadrada na Lei de Irrigação, livre das regras e taxas impostas aos irrigantes, bem como a aplicação de políticas públicas promovam a soberania alimentar e autonomia das comunidades.

(2) A lógica de produção do perímetro ameaça o ambiente, a saúde e a vida das comunidades cercadas pelo agronegócio. Como?

– A rentabilidade dos lotes irrigados depende do pacote técnico da revolução verde. A forma de produzir no perímetro é marcada pelo uso de fertilizantes químicos e agrotóxicos, que contaminam o ar, a água, solo e a força de trabalho contratada pelas empresas.

– A monocultura reduz a biodiversidade da fauna e flora local, com consequências para o ecossistema, contribuindo para a proliferação de pragas e doenças, que alcançarão a área de produção dos(as) agricultores(as), representam ameaça à transição agroecológica das comunidades.

Antevendo tais problemas, as comunidades exigem uma zona de amortecimento, para minimizar os riscos desencadeados pelo uso do pacote químico por parte das empresas do agronegócio.

Assim, após anos de negociação, a luta e a resistência, a comunidade rompeu a cortina de ferro do DNOCS. Em agosto de 2011, o órgão acordou, por meio de um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), um novo plano de reassentamento, que seguiria as seguintes diretrizes:

  • O reassentamento seria feito em três áreas distintas: (1) na localidade do Cipó, seriam reassentadas as famílias das comunidades de Bananeiras e Escondida; (2) na localidade de Lagoa dos Cavalos, seriam realocadas as famílias desta comunidade, do Junco, Córrego Salgado e Barbatão e (3) no distrito do Peixe, ficariam as famílias desapropriadas desta localidade.
  • A área de reassentamento foi reduzida de 1.442 para 159 hectares, sendo composto por uma área coletiva de produção, correspondente a média de 3 a 4 hectares por famílias, com pontos de água e energia elétrica.
  • A zona de amortecimento será de 10 metros de largura, objetivando reduzir os impactos advindos do projeto de irrigação.
  • Cada reassentado receberá uma casa, com área total de 1.012 m2, composta por quintal de 785,5 m2, espaço planejado para criação de pequenos animais e cultivo de frutas e hortaliças.
  • Os lotes irrigados do perímetro que ficarem na fronteira com os reassentamentos serão ocupados por pequenos produtores, evitando a instalação de grandes empresas nas proximidades das comunidades.
  • Os reassentados, mesmo com a terra de produção coletiva, poderão participar do processo de seleção para lotes no perímetro e, caso selecionados, terão prioridade para escolher lotes mais próximos das áreas de reassentamento.
  • O traçado do projeto deverá mudar para preservar as comunidades de Cipó, Peixe e alguns equipamentos coletivos da comunidade de Lagoa dos Cavalos, a saber: Casa de Farinha, a Unidade de Raspa, prédio do colégio e algumas propriedades.

Apesar dos cortes e desacordo em alguns pontos, como a redução da área dos reassentamentos, que comprometerá a expansão futuro das comunidades, a Comissão de Resistência optou por assinar o TAC, garantido a conquista de direitos que foram negados durante todo o processo de negociação, principalmente, no que tange a terra de produção e o não enquadramento dos(as) agricultores(as) reassentados(as) na Lei de Irrigação.

Apesar de ter assinado o TAC em 2011, o DNOCS só iniciou a construção dos reassentamentos em dezembro de 2013, mas ainda não sinalizou data para disponibilizar a terra de produção com a infraestrutura acordada, isto é, água e energia. A morosidade na construção do reassentamento contrasta com a velocidade de construção dos canais e sistemas de irrigação para os lotes do perímetro.

Mesmo com a conquista da área de produção, da zona de amortecimento, do distanciamento dos lotes de empresários da comunidade, entre outros pontos, percebe-se que os impactos diretos e indiretos são irreversíveis, afetando a lógica de reprodução social das comunidades rurais.

Com o subsídio dos trabalhos de Braga (2010) e Alves (2012) e do acompanhamento dos conflitos com as comunidades, podemos indicar que as famílias atingidas absorvem/absorverão a maior carga de impactos com a instalação do Perímetro Irrigado, seja pela dinâmica de construção dos sistemas de engenharia, que implicam na desapropriação das famílias, seja com o processo de reassentamento e funcionamento pleno dos lotes irrigados com todo o seu pacote químico de produção, que disparam diversos problemas socioambientais.

SÍNTESE DA LÓGICA DESTRUTIVA DA INSTALAÇÃO DO PI TABULEIROS DE RUSSAS

Como síntese da lógica destrutiva da política de irrigação do DNOCS, arrolamos alguns apontamentos/questionamentos que expressam a desestruturação das comunidades e antevêem, também, à quais riscos as famílias desapropriadas estarão submetidas:

– A instalação do projeto irrigado desestruturou as diversas experiências de convivência com semiárido em curso nas comunidades (a exemplo do Sistema Agrosilvopastoril), comprometendo anos de experimentação, práticas e saberes que foram incorporados ao território local.

– A instalação do projeto irrigado produz processos de insegurança alimentar e nutricional em decorrência da paralisação e/ou redução da produção agrícola. As famílias das comunidades Bananeiras, que migraram para as localidades de Cipó e Fazenda Maia, já enfrentaram dois anos de seca (2011 e 2012), com reduzida produção, intensificada pala ausência de políticas públicas que garantissem a transição para uma nova área. A soberania alimentar foi comprometida. Hoje, as famílias compram quase todos os gêneros alimentícios necessários a sua reprodução.

– A instalação do perímetro ameaça a saúde ambiental com implicações diretas e indiretas para a saúde das famílias e continuidade dos projetos de transição agroecológica e convivência com o semiárido. A redução da biodiversidade local, com a implantação de 14 mil hectares de monoculturas de frutas tropical (área total da primeira e segunda etapa) e produção calcada na utilização de agroquímicos, compromete a apicultura das comunidades, seja na produtividade com redução da área de forrageamento, seja na qualidade, com redução da diversidade floral e, ainda, impõe riscos de contaminação do mel por resíduos de agrotóxicos.

– As famílias reassentadas ficarão cercadas pelo perímetro irrigado comprometendo a expansão futura da comunidade e mesmo com a garantia da zona de amortecimento estarão expostas aos riscos de contaminação impulsionados pela aplicação de agrotóxicos nos lotes irrigados. Cabe destacar, que a área do perímetro ocupa os melhores solos da região, restando nas áreas adjacentes solos com fertilidade inferiores ou mal drenados.

– Com a desestruturação da produção agrícola os(as) agricultores(as) estão vendendo sua força de trabalho para as empresas do agronegócio já instaladas na primeira etapa do projeto. Como parte das desapropriações implica numa reduzida indenização em dinheiro, que não possibilitam o reestabelecimento pleno das famílias em outra área, somado ao atraso na construção do reassentamento, o emprego nas empresas do agronegócio surge como uma alternativa infernal: ou se vende a força de trabalho e se adapta a racionalidade e os riscos ocupacionais encontrados nas empresas do agronegócio ou corre-se o risco de cair na miséria, já que as terras estão cortadas pelas obras dos canais e sistemas de engenharia, comprometendo a produção e geração de renda.

– A instalação do perímetro fortalece, assim, o papel de fornecer mão de obra barata e sem alternativas para o agronegócio na região, ampliando o exercito industrial de reserva e margens de exploração da força de trabalho pelo capital.

– Os perímetros irrigados materializam um processo de contra-reforma agrária, já que os lotes irrigados serão dominados e concentrados por agentes externos ao lugar, notadamente empresas do agronegócio, de capital nacional e internacional, intensificando a desigualdade social e a repartição desigual dos rejeitos e proveitos.

A análise da estrutura fundiária da primeira etapa do projeto de irrigação possibilita revelar quem são os reais beneficiados com a instalação do perímetro. Os 10.564,00 ha de área da primeira etapa são distribuídos em quatro categorias de irrigantes: pequeno produtor, técnico agrícola, agrônomo e empresa. As quatro categorias acessam por edital de seleção lotes de 8, 16, 24 e 34 a 145 ha, respectivamente. Isto é, o pequeno produtor recebe o menor lote, enquanto a empresa, lotes que variam de 37 a 145 ha. Mas é na análise da distribuição da área total por categoria de irrigante que percebemos os reais beneficiados. O somatório da área de todos os lotes de pequeno produtor totaliza 3.9992,0 ha, já a área dos lotes de empresas ocupa 5.034,0 ha, isto é, 11,78% dos lotes, que serão ocupados por empresas, representam 47,65% da área total da primeira etapa, enquanto os pequenos produtores, que totalizam 67,82% dos irrigantes e ocupam apenas 37,78% da área total.

Somado ao fato de que 47,65% da terra será ocupada por empresas, mais a área de profissionais das agrárias (técnicos e agrônomos), não podemos olvidar que os desapropriados apesar de terem direito a disputar um lote, num processo de seleção coordenado pelo DNOCS, sabemos, que pelos critérios de racionalidade empresarial utilizados para seleção, parte ou maioria dos(as) agricultores(as) desapropriados não serão selecionados, corroboram com a lógica de expropriação da política pública de irrigação orquestrada pelo Governo Federal.

Com base nas informações expostas anteriormente, fica claro que o grande capital, representado pelo agronegócio, será o maior beneficiado com a instalação do Perímetro Irrigado Tabuleiros de Russas. As empresas nacionais e internacionais serão atraídas para o projeto de irrigação, por intermédio das políticas de venda dos lugares coordenada pelo Governo do Estado e Federal.

Para impulsionar a atração do capital privado, o poder público oferece aos investidores um conjunto de vantagens ‘naturais’ e artificialmente produzidas, entre as quais destacamos: (i) solos aptos à irrigação, (ii) o foto-período propício ao desenvolvimento da fruticultura irrigada e a (iii) segurança hídrica proporcionada pela política de açudagem; e entre as vantagens produzidas artificialmente figuram: (iv) a infraestrutura para o armazenamento e escoamento da produção (estradas, portos e aeroportos), (v) abundância de força de trabalho desterrada, sem organização sindical, (vi) os incentivos fiscais e tributários, (vii) as universidades e empresas públicas de pesquisas, que estarão disponíveis para atender a demanda de conhecimentos e tecnologia do grande capital, entre outras.

Assim, o cenário tendencial do Perímetro Irrigado Tabuleiro de Russas é o mesmo dos diversos instalados no semiárido nordestino: domínio dos lotes por agentes externos ao local, representados pelo o agronegócio nacional e internacional; utilização dos bens naturais – solo e água – para exportação de frutas tropicais, drenando as riquezas para espaços longínquos, minando a soberania alimentar da região, visto que o mercado local fica apenas com o refugo da produção; ampliação do número de trabalhadores(as) agrícolas, com contratos precários e expostos(as) aos diversos riscos ocupacionais; a contaminação do solo, água e ar por agroquímicos, que inviabilizam, ainda, a coexistência de outras lógicas de produção livre do pacote da revolução verde e da racionalidade empresarial.

Não obstante, ainda resta uma esperança no mar de destrutividade imposto pelo DNOCS: o reassentamento com sua área de produção conquistada na luta pelas famílias atingidas. Urge um esforço dos movimentos sociais, organizações não-governamentais, universidades, pesquisadores, e principalmente, das famílias atingidas para retomar, na área conquistada, as experiências, saberes e práticas de uso e gestão do território desenvolvidos durante décadas pelos(as) agricultores(as).

As famílias reassentadas carregam a missão de continuar a disputa pelo território no Tabuleiro de Russas, de reafirmar a existência de outras racionalidades de uso e gestão da natureza, de organização da produção agrícola, de uso do território. Carregam, ainda, a missão de registrar, sistematizar e difundir as práticas e estratégias destrutivas utilizadas pelo DNOCS na instalação do perímetro irrigado e de registrar, sistematizar e difundir o fracasso e o esgotamento das obras e políticas vigentes de combate à seca.

Parte dessa missão já foi cumprida, quando os(as) agricultores(as) da Chapada do Apodi, do lado do Rio Grande do Norte, em intercâmbio promovido entre áreas em conflito com o DNOCS foram visitar a comunidade de Lagoa dos Cavalos e perceberam toda a destrutividade da política de irrigação orquestrada pelo Governo Federal. A partir da visita, das conversas e apreensão da nova paisagem, com canais, terras cortadas, vidas e experiências apagadas, os(as) agricultores(as) que estão em luta contra a instalação do Perímetro Irrigado Santa Cruz, em Apodi (RN), reforçaram sua crença de que o modelo de (des)envolvimento proposto pelo DNOCS não comporta a lógica de bem viver da agricultora camponesa.

 

REFERÊNCIAS

 

  1. ALVES, M. O. Mercado, arame e estado: recursos comuns e resistência em Lagoa dos Cavalos no sertão do Ceará. 2012, 341f. Tese (Doutorado em Desenvolvimento Sustentável) – Universidade de Brasília, Brasília, 2012.
  2. BRAGA, L. Q. V. Agronegócio cercando Agroecologia: Modo de Vida e Conflito Socioambiental em Comunidades Agrícolas de Tabuleiro de Russas, Ceará. 2010,182f. Dissertação (Mestrado em Saúde Pública) – Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2010.
  3. PROJETO DE IRRIGAÇÃO TABULEIRO DE RUSSAS – 1ª ETAPA. Estudos de Impactos Ambientais/Relatório de Impactos no Meio Ambiente. Departamento Nacional de Obras Contra a Seca, 1991.
  4. PROJETO DE IRRIGAÇÃO TABULEIRO DE RUSSAS – 2ª ETAPA. Estudo de Impacto Ambiental/Relatório de Impacto Ambiental. Departamento nacional de Obras Contra a Seca, 2005.
  5. PLANO DE REASSENTAMENTO. TABULEIRO DE RUSSAS, CEARÁ – 2ª ETAPA, 2010, p. 20.
  6. CÁRITAS DIOCESSANA DE LIMOEIRO DO NORTE, CE. Solicitação ao Exmo. Dr.: Luiz Carlos Oliveira Júnior. Procurador do Ministério Público Federal em Limoeiro do Norte, 2009.
  7. COMISSÃO DE RESISTÊNCIA. Projeto de Reassentamento, 2009, p. 2.
  8. ABAIXO ASSINADO: Pela garantia dos direitos das comunidades atingidas pela 2ª Etapa do Projeto de Irrigação de Russas, 2010.
  9. MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL. Nota Técnica Nº 05/09. “O projeto de Irrigação Tabuleiro de Russas e seus impactos nas comunidades situadas na área” à Procuradoria da República no Estado do Ceará, Ministério Público Federal em setembro de 2009. Referência: P.A nº 1.15.001.000059/2009-56, setembro de 2009.
  10. TERMO DE REPRESENTAÇÃO Nº 07/2011. Comissão do Tabuleiro de Russas, 2011.
  11. PORTO-GONÇALVES, C. W. A globalização da natureza e a natureza da globalização. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.
  12. SANTOS, Milton. Da política dos Estados à Política das empresas. In: Cadernos da Escola do Legislativo de Minas Gerais, 1997.
  13. SOUZA, Maria Adélia. Geografias da Desigualdade. HUCITEC: São Paulo, 1994.

 

 

[1] http://www.ipece.ce.gov.br/publicacoes/perfil_basico/pbm-2012/Morada_Nova.pdf;

http://www.ipece.ce.gov.br/publicacoes/perfil_basico/pbm-2012/Limoeiro_do_Norte.pdf.

[2] Lei nº 6.662, de 1979, revogada pela Lei nº 12.787, de 2013.

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