Perímetro Irrigado Baixo Acaraú

Perímetro Irrigado Baixo Acaraú, relações assimétricas e mercado de terras: das tensionalidades provocadas às tensões territoriais invocadas

As primeiras discussões para a implantação do Perímetro Irrigado Baixo Acaraú, localizado entre as terras cearenses de Acaraú, Bela Cruz e Marco, iniciam-se na década de 1980 (figura 1). Esses municípios contam com a disponibilidade hídrica do rio Acaraú, segundo maior rio em extensão do Ceará, e já apresentavam plantios irrigados feitos artesanalmente pelas comunidades, direcionados à agricultura familiar (ARAÚJO, 1971; GIRÃO, 2000).

A estratégica localização do perímetro baseou-se, especialmente, nos elementos naturais existentes, na presença de trabalhadores que foram subempregados e pelas vias favoráveis à circulação e à distribuição, o que possibilitou o constante fluxo de pessoas, produtos, transportes e capital, aproximando a produção ao consumo de forma mais veloz. Estes elementos, bem explicitados por Harvey (2006, p. 50), integram e colaboram para a produção capitalista do espaço geográfico.

Assim, a presença de rodovias federais e estaduais para o escoamento da produção, a reserva dessa força de trabalho e, primordialmente, maciços investimentos financeiros, motivaram os interesses dos empresários do agronegócio a esses espaços, como apontam as informações divulgadas pelo Distrito de Irrigação Baixo Acaraú-DIBAU:

A concepção do Perímetro Irrigado Baixo Acaraú, localizado na região Norte do estado do Ceará distando 220 km de Fortaleza e 160 km do porto de Pecém, tem uma posição privilegiada para exportação de seus produtos. Podendo alcançar à Europa ou Estados Unidos da América do Norte em 7 dias de navio ou 10 horas de avião. Para o mercado interno está interligado com a malha rodoviária nacional por rodovias asfaltadas.O Perímetro foi implantado por iniciativa do Ministério da Integração Nacional, o qual contou com a parceria do BIRD – Banco Interamericano de Desenvolvimento (http://www.baixoacarau.com.br/?pg=projeto Acesso: 12 de março de 2013).

Anterior à entrada do perímetro irrigado, as comunidades de Acaraú, Bela Cruz e Marco eram constituídas, primordialmente, por índios, pescadores, camponeses e artesãs que usavam as plantas carnaubeiras na confecção de artigos diversos. Ainda que não tenha sido destruída, essa realidade se altera, sobremaneira, de forma abrupta com a chegada de pessoas vindas de outros locais, interessadas no perímetro irrigado, com outros hábitos e culturas. Já o poder político local centralizava-se nas famílias “tradicionais”, com maior influência econômica e política, porquanto eram os principais proprietários de terra da região, que, mesmo décadas depois, ainda se mantêm com esse status, tais como: Osterno, Rios, Aguiar, Ferreira, Gomes, dentre outros.

Para a instalação da primeira etapa do perímetro foram iniciadas as desapropriações, em 1987, cobrindo 13.909,42 hectares, a fim de construírem-se as infraestruturas (canais, barragem, estradas, diques etc.), resguardo das reservas legais (proteção ambiental) e de outras áreas (lagos, charcos etc.), além daquelas destinadas aos lotes agrícolas implantados na etapa inicial, bem como os que pertenceriam à segunda fase do projeto irrigado, como sintetizado no quadro 1.

QUADRO 1: Área desapropriada para o Perímetro Irrigado Baixo Acaraú

ÁREA DESAPROPRIADA (ha)
Áreas irrigáveis – Implantada (1ª etapa) 8.335,00
Áreas irrigáveis – A implantar (2ª etapa) 4.268,00
Reserva legal 936,28
Infraestrutura 313,52
Lagoas, charcos, etc. 56,62
Área afetada 13.909,42

Fonte: Departamento Nacional de Obras Contra as Secas-DNOCS, 2009.

Conforme os autos de desapropriação, algumas famílias expropriadas de suas terras (cerca de 150 para a primeira fase do projeto) estavam no local há, pelo menos, 60 anos, como é o caso de J. P. dos S., dentre outros, tendo fixado suas raízes e construído laços de afetividade no território.

Esse processo vivenciado pelas famílias se traduz como uma ruptura violenta com o passado e, ao mesmo tempo, a incorporação conflituosa de novos elementos, por meio da (des)-(re)territorialização (RAFFESTIN, 1993; DINIZ, 2002; COSTA, 2004). É a expropriação da terra de trabalho, como denomina Martins (1991), mas também a perda de referenciais simbólicos e marcos históricos.

Grande parte dessas pessoas era oriunda do Triângulo de Marco, Lagoa de Santa Rosa, Nova Morada, Baixa do Meio, Bom Jesus, Ventura, São José, Barreiras, São Lourenço e Cafundó, comunidades pertencentes aos municípios de Acaraú, Bela Cruz e Marco (DNOCS, 1990).

A situação de posse das terras desapropriadas para a construção do perímetro demonstra que os mais atingidos foram aqueles que viviam da agricultura familiar, muitos já despossuídos de terras, naquele período. O próprio relatório elaborado pela Comissão de Desapropriação identifica o problema, ao dizer que “além do alto grau de concentração fundiária, outro aspecto a ser destacado é a existência de um número significativo de produtores sem terra, representados pelos comodatários, arrendatários e parceiros” (PRONI; DNOCS, 1988, p. 8).

Seguindo o exposto no quadro 2, os comodatários representavam 70,3% do total dos estabelecimentos, entre terras de 25 a 50 hectares. Nessa situação, os agricultores firmavam contratos escritos ou verbais, em que os proprietários absenteístas concediam o uso das terras, em troca de suas conservações e vigilâncias, pelos comodatários ou moradores, como também eram chamados.

QUADRO 2: Situação de posse das terras desapropriadas para a construção do perímetro.

AGRICULTORES REPRESENTAÇÃO (%) POSSE DA TERRA (ha)
Comodatários 70,3% 25 – 50
Arrendatários 16,7% 10 – 25
“Parceiros” 6,4% 50 – 100

Fonte: Adaptado de PROJETO BAIXO ACARAÚ: Relatório Geral do Levantamento Cadastral e Fundiário, vol. I – PRONI; DNOCS, 1988.

Os agricultores arrendatários somavam 16,7%, ocupando entre 10 e 25 hectares. Estes também trabalhavam nas terras de outros proprietários, mas pagavam-lhes pelo uso, por meio da renda na forma de trabalho ou dinheiro, em troca de cultivarem alimentos para a sua família, como o feijão, milho e a mandioca (PRONI; DNOCS, 1988).

Os “parceiros” constituíam a menor parcela (6,4%) existente nas áreas desapropriadas para a implantação do Perímetro Irrigado Baixo Acaraú. Nesse caso, eram agricultores que também trabalhavam em terras que não lhes pertenciam, de 50 a 100 hectares, dividindo a sua produção agrícola. A plantação do caju era bem característica, nessas condições (PRONI; DNOCS, 1988).

 Essa realidade entra em consenso com o que fora observado, por  Silva (1989), em outros projetos de irrigação no Nordeste, pois, em geral, as áreas desapropriadas para a instalação de projetos de irrigação eram ocupadas, principalmente, por pequenos proprietários e posseiros, enquanto os grandes proprietários raramente eram atingidos.

Diversos foram os conflitos no momento da desapropriação, tendo sido essencial o papel da Igreja para a instalação do Perímetro Irrigado Baixo Acaraú. Nesse sentido, o relato do integrante da comunidade do Triângulo de Marco é bastante expressivo:

Uma briga malvada. A primeira coisa é que os produtores e as pessoas que ficaram contra é porque não sabiam como era que iam ficar e o que diziam é que iam desapropriar e ia botar para ir se embora para outro local e se revoltaram e não queriam de jeito nenhum um projeto dessa natureza. E foi uma briga danada. A igreja que foi no caso do monsenhor Valdir, era do lado do povão, também apoiou né?(…) Até que foi indo, foi indo, junto com os político e os governo e os deputado, essas coisa, como eles achavam que era mesmo de extrema importância de geração, eles diziam para eles, que gerava muito emprego e renda, até que foi indo e toda briga, reunião por cima de reunião, fazia reunião nas comunidades, tinha dia que o povo se revoltava e pedia para eles explicá, se era daquele jeito mesmo, como é que eles iam atuar a partir dali, que eles não iam sair daquele local deles, tinha nascido e se criado ali, não tinham para onde ir, para outro canto, era uma confusão malvada. (…). Até que com muita reunião, muita assembléia aqui no sindicato. Menino foi uma revolução danada! Aí foi aprovado. (Entrevista realizada por Vasconcelos (2010), em agosto de 2009, com F. F. no Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Marco-CE).

Essas pessoas, motivadas pelo carisma de figuras religiosas e induzidas pelas palavras de ordem propagadas pelo Estado, “geração de emprego e renda”, consentiram a construção do Perímetro Irrigado Baixo Acaraú, esperançosas de melhores condições de vida à população.

Para a entrada do perímetro foram utilizados intensamente os recursos midiáticos, em que, por meio tanto de frases impregnadas de conteúdo ideológico, esse fixo geográfico era repassado como: “Nova fonte de vida para os cearenses”, ou ainda, a mudança do “perfil da agricultura no Norte do Ceará”, como expõe a campanha publicitária divulgada em 1996 (figura 2).

Nesse processo, algumas comunidades resistiram às desapropriações (iniciadas no ano de 1987) e atualmente continuam em suas terras, embora alguns integrantes encorpem o quadro de trabalhadores temporários do perímetro irrigado, pelas dificuldades enfrentadas. Dentre essas comunidades, estão Lagoa de Santa Rosa, São Gerardo, Nova Morada, Canecão, Baixa do Meio, Escondido, Telha, Capim Nassum, Cajazeiras, Oriente, Alpercatas e a comunidade indígena Tremembé de Queimadas. Enquanto muitos saíram com suas indenizações em busca de reconstruir suas vidas em outros lugares, outros agricultores retornaram como reassentados nos lotes agrícolas, embora muitos, anos depois, tenham os vendido ou, ainda, saído dos mesmos, por não conseguirem manter os custos elevados com a irrigação.. Foi o que ocorrera, por exemplo, com os antigos moradores da comunidade do Triângulo de Marco, reassentados no perímetro e que possuíam como principal atividade a agricultura. Atualmente, alguns destes residem na Vila dos Amaros (Marco-CE), sob condições precárias de moradia, por não conseguirem reativar a irrigação no lote agrícola.

Sobre as indenizações pagas pelo Estado, um agricultor desapropriado e reassentado nos revela:“O pagamento foi coisinha, só coisinha pouca. Eu mesmo recebi, só umas coisinhas, só pra dizer mesmo que foi desapropriado. Eu recebi na época, era no cruzeiro, dava novecentos e pouco. Era os benefícios, as benfeitorias. Minha propriedade era pequena, de 18 hectares”. A entrevista concedida por J., agricultor reassentado do Perímetro Irrigado Baixo Acaraú à Vasconcelos (2010), no Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Marco-CE, em  dezembro de 2009, nos conduz a pensar que a terra, para esses agricultores, significa lugar de trabalho, moradia e a possibilidade do encontro com a família e vizinhança, portanto a configuração do seu território.

Encerradas as desapropriações e a instalação infraestrutural, inicia-se apenas no ano de 2001 a administração do Perímetro Irrigado Baixo Acaraú. Durante esse período, de aproximadamente 20 anos para a construção do perímetro, muitas foram as denúncias de irregularidades nas obras do DNOCS, conforme divulgação em matérias jornalísticas organizadas no quadro 3, contribuindo para a longa demora na sua implantação.

Não obedecendo a limites administrativos, o perímetro irrigado apresenta-se como um “enclave” situado no sertão cearense. Conforme a tabela 1, este se situa entre 83% das terras de Acaraú, 11% de Marco e 5% de Bela Cruz, totalizando 8.335 hectares de áreas irrigáveis, redistribuídas entre 212 pequenos produtores, possuidores de, pelo menos, respectivamente, de acordo com as informações repassadas pelo DIBAU (agosto/2009).

TABELA 1: Área do Perímetro Irrigado Baixo Acaraú

 MUNICÍPIOS  SUPERFÍCIE TERRITORIAL (ha)  ÁREA IRRIGÁVEL (ha)  ÁREA IRRIGÁVEL (%)  ÁREA ATINGIDA (ha)
Implantada (1ª etapa) A implantar (2ª etapa)
Acaraú 84.300 6.971 3.570 83,63 % 10.541
Marco 57.400 0, 932 0, 477 11,18% 1.409
Bela Cruz 84.200 0, 432 0, 221 5,19% 0, 653
Total 225.900 8.335 4.268 100,0% 12.603

Fonte: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE; DNOCS, 2009.

O Município de Acaraú é o mais afetado, concentrando o maior percentual de terras, enquanto outra atividade econômica compete com a fruticultura irrigada: a carcinicultura. Os viveiros de camarão traduzem a relevância dessa atividade, no cômputo econômico, ao passo que revelam fortes problemáticas sociais, principalmente em decorrência das questões ambientais e fundiárias, com conflitos por terra e água.

Bela Cruz, pelo fato de representar a menor parcela de terras exploradas (0, 653 da superfície territorial), contrastando com os outros municípios envolvidos, mostra uma dinâmica menos expressiva, frente aos demais.

No Triângulo de Marco, comunidade a 8 km do município de Marco, denota-se o maior fluxo de pessoas e serviços, em virtude, principalmente, da localização do escritório do DIBAU, responsável pela movimentação financeira e organizacional do perímetro.

A concepção do perímetro irrigado carrega consigo os seguintes objetivos: modernizar a agricultura, aproximando-a da industrialização, atrair empresários e incluir a população no ramo do agronegócio, sob o discurso da “geração de emprego e renda” (PRONI; DNOCS, 1987).

A inserção da agricultura cearense nas transações internacionais para atender as demandas do mercado externo, entretanto, constitui-se como principal finalidade do modelo de irrigação idealizado pela iniciativa privada e incentivado pelas ações estatais, como foi a criação do Perímetro Irrigado Baixo Acaraú.

A fruticultura compõe a maior parte da produção, destacando-se as lavouras de banana, mamão e melancia. A agricultura de sequeiro consorciada às frutas, contudo, também é amplamente evidenciada, por meio da presente agricultura familiar, cultivada, em grande parte, pelos reassentados. Estes, mesmo na busca do Estado em metamorfoseá-los em produtores irrigantes, permaneceram com laços campesinos conflitualizando com as práticas demandadas por essa agricultura irrigada, demonstrando quão heterogêneas são as relações socioespaciais no projeto de irrigação.

A presença desses agentes sociais no Perímetro Irrigado Baixo Acaraú testemunha uma das “contradições” estrategicamente sustentadas pelo capitalismo, ou seja, participam do projeto de irrigação, convivendo em situações difíceis, ao lado de empresários e especuladores, ao passo que, nesse âmbito, ainda que destoantes das demais, suas produções agrícolas são utilizadas, pelo quadro estatístico da produção do Baixo Acaraú.

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