Perímetro Irrigado Santa Cruz de Apodi

PROJETO DE IRRIGAÇÃO SANTA CRUZ DO APODI – RIO GRANDE DO NORTE

APRESENTAÇÃO

Aos vinte e oito dias do mês de agosto de 2012 foi assinada a ordem de serviço (OS) do “Projeto de Irrigação Santa Cruz do Apodi” que, capitaneado pelo Departamento Nacional de Obras Contra a Seca – DNOCS, deverá ser instalado na Chapada do Apodi, entre os municípios de Apodi e Felipe Guerra, ambos no estado do Rio Grande do Norte. O referido projeto está em fase de instalação e pretende desapropriar 13.855 ha (treze mil oitocentos e cinquenta e cinco) hectares para a implementação de um programa de fruticultura irrigada. O Mapa 1 abaixo expõe o local de instalação do perímetro e do canal de irrigação e a localização das comunidades camponesas em relação ao projeto.

Mapa 1: Projeto do Perímetro Irrigado Santa Cruz – Apodi-RN

 

PISCA

Fonte: adaptação do mapa do DNOCS (2009)

A linha amarela é o polígono que envolve o Projeto de Irrigação Santa Cruz Apodi e a linha azul é onde o canal de irrigação irá passar. Os círculos em vermelho correspondem às comunidades rurais da Região Chapada do Apodi. É válido salientar que esses círculos não estavam presentes no mapa do DNOCS (2009), ou seja, não havia o registro das comunidades que, direta e/ou indiretamente, serão afetadas com esse projeto de irrigação.

Na localidade, de acordo com dados do Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Apodi (STTRA), compreendendo a área a ser desapropriada e a que fica no entorno do perímetro a qual também sofrerá fortes impactos, habitam 1.649 famílias divididas em 55 comunidades rurais, conforme Quadro a seguir:

Comunidades rurais Projeto de Assentamento do INCRA Projeto de Assentamento do Crédito Fundiário
Comunidade Nº de Famílias Comunidade Nº de Famílias Comunidade Nº de Famílias
Algodão 07 Frei Damião 50 Agrovila Palmares 30
Aroeira Verde 03 Caiçara 60 Casulo 12
Baixa do Tubarão 10 Paulo Canpum 60 Letícia 15
Campinas 03 São Bento 45 Imóvel Algodão 12
Canto de Vara 15 Tabuleiro Grande 60 Baixa Verde I, II e IV 51
Carrasco 10 Sitio do Gois 60 Cruzeiro 02
Chiqueiro dos Bodes 04 Vila Nova 10
Coaçu 01 Aurora da Serra 70
Fazenda Nova Soledade 01 Moacir Lucena 25
Fazenda São Luiz 01 Milagre 32
Ipoeira 10 Paraíso 36
João Pedro 07 Lage do Meio 28
Lage do Meio 18 São Manoel 26
Lagoa do Clementino 100 Nova Descoberta 42
Lajedo da Ovelha 05
Manoplo 06
Morada Nova 10
Mulugu 20
Ostra 02
Pau dos Ferros 40
Pereiro da Raiz 01
Poço Tilon 15
Primazia 02
Quadra 03
Quixabeirinha 20
Reis Magos 01
São Francisco 65
Serraria 01
Sitio Baixinha 05
Sitio Cruzeiro 02
Sitio do Góis 60
Sitio Lagoa Vermelha 04
Sitio Planalto 06
Sitio São José 05
Soledade 450
SUB-TOTAL 913 SUB-TOTAL 604 SUB-TOTAL 132
Total Geral 1.649

 

Essas comunidades camponesas da Chapada do Apodi-RN possuem aspectos culturais, históricos e sócioeconômicos próprios, hoje referência nacional em produção agroecológica e familiar e que, devido ao modo como o projeto está sendo executado, estão na iminência de uma série de violações aos seus Direitos Humanos, econômicos, ambientais, sociais e de saúde. A região apresenta, também, características de relevo, fauna e flora peculiares, possuindo uma ampla lista de espécies endêmicas, bem como formações arqueológicas de grande importância para o patrimônio histórico e cultural brasileiro que, da mesma forma, encontram-se em risco latente de degradação.

Esse estudo acerca da problemática da Chapada do Apodi/RN foi construído com base em pesquisas realizadas em Apodi-RN e em outras localidades; em vozes dos movimentos sociais e dos agricultores familiares da Chapada do Apodi-RN, em especial na carta publicada no Dossiê da ABRASCO sobre os impactos dos agrotóxicos III parte; e no dossiê-denúncia “Projeto da Morte: projeto de irrigação Santa Cruz do Apodi” construído por entidades do Rio Grande do Norte.

COMPREENDENDO A REALIDADE SÓCIO-AMBIENTAL DA REGIÃO DO APODI-RN HOJE

Apodi é um município do estado do Rio Grande do Norte situado na mesorregião Oeste Potiguar e na microrregião Chapada do Apodi. De acordo com o IBGE (2010), tem uma população de 34.777 habitantes: 17.545 em áreas urbanas e 17.232 em áreas rurais. Possui uma área territorial de 1.602,47km2, a caatinga como bioma, o clima é o semiárido e a Barragem Santa Cruz do Apodi com capacidade para acumular 600 milhões de m3, inaugurada em 11 de março de 2002, como principal reservatório hídrico.

As atividades do meio rural, como agricultura, pecuária e extrativismo são as principais fontes de trabalho e renda e marcam a economia do município, o qual possui, ainda, como uma de suas atividades econômicas o turismo ecológico (MARTINS; OLIVEIRA; MARACAJÁ, 2006) especialmente devido ao sítio arqueológico Lajedo de Soledade, com suas pinturas rupestres datadas de 03 a 10 mil anos.

A região apresenta uma exemplar distribuição agrária, onde prevalecem as pequenas propriedades familiares. Em relação a essa estrutura fundiária de Apodi, teve origem em um período de grande efervescência dos movimentos do campo nas décadas de 1980 e 1990. Por meio de manifestações políticas, entre elas ocupações de terra, foi impulsionado na região um acentuado processo de reforma agrária, que a levou a ser atualmente destaque na distribuição agrária do Nordeste brasileiro (MEDEIROS, 2013).

Tal simetria fundiária permitiu a consolidação de um modelo de agricultura contra-hegemônico comparando-se com o atual cenário nacional. Marcado pela produção agrícola familiar e, em muitos casos, agroecológica, a política agrária da região do Apodi possibilitou a fixação do homem no campo e a redução sensível das injustiças sociais ao garantir o acesso à terra. Do mesmo modo, comprovou a possibilidade de sustentação econômica independente do modelo do agronegócio e perímetros irrigados. Com efeito, o município de Apodi figura na lista das cinco cidades do território potiguar que mais se destacaram na produção agrícola e pecuária do Rio Grande do Norte, conforme pesquisa do IBGE, no que versa sobre o Produto Interno Bruto (PIB), destacando-se como 2º maior produtor de mel do país e o maior do estado do RN em caprinovicultura. Dentro dessa organizada cadeia produtiva destaca-se também a produção de arroz, frutas, hortaliças, castanha de caju, ovinos e bovinos, projetos de piscicultura, criação de galinhas e várias outras atividades. Esse modelo é desenvolvido através da convivência com o semiárido, por meio de uma experiência de mais de 50 (cinquenta) anos na prática da pequena irrigação, como atividade econômica complementar às atividades de sequeiro.

Os benefícios para o trabalho, saúde, sustentabilidade e vivência das comunidades que experimentam essa perspectiva são bem latentes e merecem ser descritos, conforme Pontes (2012):

– Diversidade de trabalhos na produção da agricultura familiar, com destaque para a apicultura e a caprinocultura, seguidas da ovinocultura, plantação de feijão, milho e sorgo, criação de bovinos, quintais produtivos, pomares e plantações de hortaliças.

– Não utilização de agrotóxicos devido à incompatibilidade com essas atividades na perspectiva agroecológica, em especial, a apicultura.

– Significativa renda para o agricultor familiar, especialmente pela apicultura.

– O agricultor familiar camponês, nessas atividades, não tem um trabalho alienado ou estranhado, mas sim um trabalho dotado de sentido e de realização. Há uma satisfação em realizar um trabalho que alimenta a população em geral, seja do campo ou da cidade;

– Os trabalhadores da agricultura familiar têm autonomia no trabalho; o ritmo, o tempo e o controle do processo de trabalho são determinados pelo próprio trabalhador; há diversificação e criatividade nesse trabalho, em detrimento da monotonia de um trabalho repetitivo, ritmizado e sob o controle dos tempos e movimentos, no estilo taylorista-fordista, presente em empresas do agronegócio.

– O trabalho da agricultura familiar tem uma relação harmônica com a natureza e preserva o meio ambiente, destacando-se a prática do manejo da caatinga e a utilização da semente crioula.

– Esse trabalho da agricultura familiar é possível porque o trabalhador possui os meios de produção, os objetos e instrumentos de trabalho e domina todo o seu processo de trabalho. O trabalhador, aqui, é dono da terra, um dos seus objetos e instrumentos de trabalho.

– Os agricultores familiares que estão inseridos nessa produção possuem uma forma de viver caracterizada por: costume de acordar cedo; vínculo do homem com a natureza e com os animais; preocupação com as gerações futuras; a preservação da cultura de pais para filhos;  atividades de lazer, como sentar à calçada, jogar futebol, ir à igreja, conversar com os vizinhos; tranqüilidade, com vínculo e amizade entre as pessoas; há maior organização política dos agricultores familiares, no sentido de participação de reuniões das associações das comunidades, do fórum das associações, entre outras instâncias e momentos de mobilização social, bem como de reivindicações de seus direitos.

A experiência da agricultura familiar de base agroecológica da Chapada do Apodi-RN não está localizada em um passado distante, mas é algo real, vivo, que se materializa nesse momento. A implantação do Projeto de Irrigação Santa Cruz do Apodi, direcionado aos grandes empreendimentos da fruticultura irrigada, poderá ser o fator de desarticulação dessa vivência diferenciada. Existe, de fato, um confronto de modelos econômicos e matrizes de produção entre o que tem se desenvolvido em Apodi nas últimas cinco décadas e o projeto que se pretende instalar. O primeiro traduz um modelo policultor, que busca a convivência com o semiárido e a agroecologia, de modo a tornar sustentável a produção, reduzir os impactos ao meio ambiente e oferecer as bases para o bem viver das famílias. O segundo prioriza a monocultura e a exploração de grandes extensões de terra, com intensa utilização de agrotóxicos, causando diversos problemas à natureza e  à vida humana.

A realidade de Apodi é paradigmática, pois mesmo inserida na civilização do capital e vivendo sob seus impactos, conseguiu-se inaugurar processos produtivos alternativos, baseados em princípios de solidariedade e sob a perspectiva agroecológica.

RISCOS DO PROJETO DE IRRIGAÇÃO SANTA CRUZ DO APODI PARA A SAÚDE, O AMBIENTE E O SOCIAL.

A rica experiência da agricultura familiar da Chapada do Apodi-RN, exemplo de uma maneira mais justa e sustentável de convivência com o semiárido, está ameaçada pelo Projeto de Irrigação Santa Cruz do Apodi. O decreto nº 0-001 da Presidência da República, do dia 10 de junho de 2011, declarou de utilidade pública, para fins de desapropriação pelo DNOCS, a área de terra e respectivas benfeitorias de 13.855,13 hectares, localizados no município de Apodi, no Estado do Rio Grande do Norte (BRASIL, 2011). Tal área corresponde ao polígono amarelo demonstrado no Mapa 1 e onde são vivenciadas grande parte das experiências de agricultura familiar e agroecológica que mencionamos.

De acordo com Pereira e Penido (2010), os sujeitos possuem uma relação com seu território cercada de sentimentos, valores e preferências, transmitidos através de gerações que construíram sua própria cultura, seu modo de vida e não atribuem apenas valor material, mas também um valor simbólico à terra, à mata, à água, entre outros recursos naturais, formadores de identidades. Nessa perspectiva, o território transcende a dimensão objetiva da reprodução de necessidades básicas e das relações de poder ao incluir a dimensão subjetiva e simbólica, identitária, afetiva e cultural, fundada pela prática social.

A perda e/ou alteração do território como suporte da memória e da vida ocasiona um desenraizamento e um esfacelamento da identidade individual e coletiva dos sujeitos e isso incide em processos de desterritorialização (PEREIRA e PENIDO, 2010).

A ocupação do espaço pelo Projeto de Irrigação Santa Cruz do Apodi e, em consequência, do agronegócio, ocasionaria tal desterritorialização. Esta seria a exclusão, privação e/ou precarização da vida das pessoas atingidas, as quais são as menos favorecidas, afigurando-se como formas de exclusão socioespacial e insegurança (PEREIRA e PENIDO, 2010). A desterritorialização, para os mais pobres, é “resultado da total falta de opção de alternativas, de ‘flexibilidades’, em experiências múltiplas imprevisíveis em busca da simples sobrevivência física cotidiana” (HAESBAERT, 2002, p.12).

De acordo com Rigotto (2009), uma vez instalados esses grandes processos de produção, como a vinda do Projeto de Irrigação Santa Cruz do Apodi, ocorrem amplas transformações territoriais que repercutem de forma diversificada na vida das pessoas atingidas. Podemos citar a desorganização do modo de vida de comunidades tradicionais; o comprometimento da biodiversidade e do acesso a recursos naturais, como a terra e a água; desagregação familiar e novos padrões de gênero. Soma-se ainda a atração de grandes contingentes de trabalhadores de outras localidades para o território, o que gera novas demandas de saneamento, moradia, educação, lazer, transporte. Associam-se também a esses processos migratórios a violência, acidentes de trânsito, doenças sexualmente transmissíveis e AIDS, consumo de álcool e drogas ilícitas, doenças mentais e sofrimento psíquico, gravidez precoce etc.

Em relação aos impactos à saúde, estes estariam relacionados além de à mudança na forma de trabalhar e viver, como ao uso de agrotóxicos no agronegócio, que trazem sérios problemas de saúde tanto para os trabalhadores como para as comunidades do entorno e a sociedade em geral que consome o alimento com veneno. A utilização de agrotóxicos tem como implicações intoxicações e efeitos crônicos que podem ser expressos em distúrbios do sistema nervoso, respiratório, digestivo, reprodutor, da pele, cânceres, entre outros (RIGOTTO et al., 2010).

Podemos citar a pesquisa coordenada pela faculdade de Medicina da UFC sobre a intensa exposição ocupacional a agrotóxicos e fertilizantes. A referida pesquisa investigou 540 trabalhadores, dos quais 341 eram do agronegócio, 156 agricultores familiares camponeses e 43 trabalhadores dos assentamentos e comunidades agroecológicas. Os estudos demonstraram um quadro grave de saúde pública, haja vista que mais de 97% dos trabalhadores, dos dois primeiros grupos, estavam expostos a agrotóxicos (RIGOTTO, 2011).

À exemplo do que ocorreu com o Perímetro Jaguaribe-Apodi no lado cearense da Chapada do Apodi, o Perímetro Irrigado Santa Cruz do Apodi pode trazer implicações para o trabalho, o ambiente e a saúde, tais como: a concentração de terras e os deslocamentos compulsórios da população; a violência; o comprometimento da segurança alimentar; imposição de novos hábitos culturais; mudanças nas práticas sociais e nos laços de vida comunitária, bem como na dinâmica de cidades vizinhas, com a formação de “favelas” rurais; uso intensivo de novas tecnologias de mecanização e de insumos (fertilizantes e agrotóxicos); relações e condições de trabalho precarizadas com baixa remuneração e descumprimento da legislação trabalhista, intensificação do trabalho, exposição a situações de risco à saúde; redução da biodiversidade e dos serviços ambientais, degradação do solo pela monocultura e risco de desertificação; elevado consumo de água; contaminação do ar e de águas superficiais e subterrânea por fertilizantes e agrotóxicos; exposição das comunidades do entorno das fazendas à contaminação pelos agrotóxicos utilizados de forma intensiva.

O impacto negativo sobre a vivência agroecológica é também muito claro: perda da produção da agricultura familiar de base agroecológica, uma vez que é incompatível tecnicamente serem vizinhas do agronegócio; a transformação de um agricultor familiar camponês, um trabalhador autônomo, em um trabalhador assalariado do agronegócio, com mudanças na sua forma de viver e trabalhar e diferenças no sentido do trabalho; a precarização do trabalho; a transformação na vida das famílias dos trabalhadores ao se tornarem empregados do agronegócio, principalmente para as mulheres; a fragilização das relações entre empregados do agronegócio e o Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Apodi-RN; a utilização intensiva de agrotóxicos na produção, contaminando trabalhadores e comunidades.

Outro aspecto negativo se refere à produção de mel orgânico na Chapada do Apodi. O empreendimento levará ao desmatamento de grande área de maneira abrupta, causando grandes impactos à apicultura, já que esta depende da vegetação natural para ser realizada. Além da utilização de agrotóxicos que comprometerá a qualidade do mel produzido, retirando seu status de orgânico.

Com a consolidação do agronegócio, enquanto modelo agrário hegemônico, adotado e incentivado pelo Estado brasileiro, o problema fundiário passa a não ser mais somente a terra ociosa. A entrada perigosa do capitalismo no mundo agrário tornou o latifúndio produtivo ainda mais danoso do que a ociosidade das grandes glebas de terra (MEDEIROS, 2013). É sabido que uma distribuição equitativa de terras contribui para a diminuição das disparidades sociais (VIA CAMPESINA, 2002; CARTER, 2010). No entanto, no caso da Chapada do Apodi acontece um fenômeno sui generes: na contramão da história desfaz-se um modelo de distribuição de terras para dar lugar à concentração fundiária, em uma verdadeira contra-reforma agrária.

É em razão disso que a instalação do Projeto de Irrigação Santa Cruz do Apodi encontra uma forte resistência das comunidades camponesas e de movimentos sociais da região. Por meio de diversas manifestações e atos, chegando a reunir em duas oportunidades (ano de 2011 e 2012), duas mil pessoas, a população da região opõe-se fortemente ao que eles denominam “Projeto da Morte”.

Atualmente a Chapada do Apodi-RN vivencia um conflito socioambiental cujo cerne está na disputa pelo modelo de desenvolvimento rural que deve prevalecer. A luta contra o agronegócio tem como propulsores a defesa do acesso igualitário à terra e à água, para o que contribuiu o conhecimento das consequências dessa modernização agrícola no lado cearense da Chapada do Apodi, por meio da divulgação dos resultados da pesquisa “Estudo epidemiológico da população da região do Baixo Jaguaribe exposta à contaminação ambiental em área de uso de agrotóxicos”, realizada pelo Núcleo Trabalho, Meio Ambiente e Saúde para a Sustentabilidade – (TRAMAS) do Departamento de Medicina Comunitária da UFC (PONTES et al, 2012).

O conflito socioambiental em Apodi-RN ocorre na fase que antecede a instalação do Projeto de Irrigação Santa Cruz, ou seja, a resistência é para que o empreendimento não seja implantado da forma como ele está planejado pelo DNOCS e signifique a expansão do agronegócio na região e o fim das atividades produtivas da agricultura familiar agroecológica e do modo de vida já existente. (PONTES, 2012).

POR QUE O PERÍMETRO IRRIGADO SANTA CRUZ DO APODI É INVIÁVEL?

Esse tópico é uma coletânea das principais irregularidades técnicas que afloram no projeto do perímetro irrigado da chapada do Apodi/RN. Elas foram catalogadas no documento “Projeto da Morte: projeto de irrigação Santa Cruz do Apodi”, um dossiê confeccionado por uma equipe técnica (professores universitários, advogados, engenheiros, agrônomos e estudantes), tendo por base o RIMA – Relatório de Impacto Ambiental. Diante do resultado da pesquisa, identificamos que, em seu atual contexto, deve o projeto ser imediatamente suspenso, uma vez que tecnicamente é inviável e inexequível. Aceitar sua continuidade, nos moldes até agora propostos, é assumir o risco do dispêndio de milhões de reais dos cofres públicos sem nenhuma perspectiva de resultado econômico e social além de servir como propulsor de uma das maiores tragédias do sertão nordestino dos últimos cem anos.

  • OS PROBLEMAS AMBIENTAIS E AMEAÇAS AO PATRIMÔNIO PÚBLICO

Os empreendimentos como os Perímetros Irrigados, segundo a legislação ambiental vigente (Lei 6938/81 e RESOLUÇÃO CONAMA Nº 001/86), necessitam obrigatoriamente passar por um estudo aprofundado que possa dimensionar as agressões ao meio ambiente, bem como as violações aos direitos humanos, econômicos e culturais, não podendo ser tomado como mero protocolo ou formalidade administrativa no processo de licenciamento.

De fato, houve a elaboração de um RIMA – Relatório de Impactos ao Meio Ambiente – referente ao perímetro irrigado de Santa Cruz, todavia, percebe-se clara inconsistência de dados no decorrer do estudo, pois não quantifica os impactos, tampouco oferece condições reais que possam dimensionar as agressões ao meio ambiente. As explicitações se reduzem às imprecisões no âmbito das possibilidades, não apresentando dados concretos que caracterizem as violações ao Meio Ambiente.

Nossas críticas ao modo como o projeto foi planejado não se resumem, todavia, à perspectiva estritamente legal, há graves falhas no que tange ao ponto de vista dos atingidos (completamente ignorado), bem como à distribuição desigual dos impactos da obra. Em momento algum eles foram consultados sobre a necessidade/viabilidade do projeto e terão que arcar com todos dos impactos negativos do empreendimento, configurando o que entendemos como um caso de injustiça ambiental,

o mecanismo pelo qual sociedades desiguais, do ponto de vista econômico e social, destinam a maior carga dos danos ambientais do desenvolvimento aos trabalhadores de baixa renda, grupos sociais discriminados, aos comunidades tradicionais, populações marginalizadas e vulneráveis e povos indígenas, como o caso em apreço (ACSELRAD et al, 2009).

Percebemos em nossa pesquisa que dos pontos identificadores da injustiça ambiental, o Perímetro Santa Cruz do Apodi/RN se encaixa em quase todos, tais como: acesso desigual aos recursos naturais; distribuição desigual dos benefícios do desenvolvimento; destinação da maior carga dos danos ambientais do desenvolvimento aos trabalhadores de baixa renda, grupos sociais discriminados, povos étnicos tradicionais, populações marginalizadas nas periferias das grandes cidades e exclusão da participação nos processos de tomada de decisão e de elaboração, desenvolvimento e implantação de políticas públicas (ACSELRAD, HERCULANO e PÁDUA, 2004).

Voltando ao que se refere ao RIMA, bem como em nossa Carta Magna, os impactos deveriam ter sido avaliados exaustivamente, de modo a garantir a proteção do Meio Ambiente, assim prevê o Art. 225, § 1º, IV da Constituição Federal.

Entre os impactos apontados pelo RIMA, porém não aprofundados como deveria, podemos mencionar as agressões ao solo no momento da implantação do projeto, já que, segundo o relatório, haverá desmatamento de grande área e movimentos de terra (fl. 77), além dos demais danos também provocados pela retirada da mata nativa. Outro ponto importante são as agressões que ocorrerão nas reservas hídricas, ocasionadas pelo escoamento de águas contaminadas por agrotóxico, fertilizantes utilizados pela produção da fruticultura irrigada (BRASIL, DNOCS, 2009, p.77).

Além disso, verifica-se que com a implantação do projeto, principalmente em função do desmatamento e do manejo com o solo, seja de irrigação ou drenagem, poderão ocorrer problemas de erosão, assoreamento dos corpos de água e falta de controle no uso de fertilizantes e biocidas, além da salinização do solo decorrente do manejo incorreto da técnica e do sistema de drenagem. Em sua p. 87, o RIMA prevê que com a implantação desse Projeto pode ocorrer a contaminação das águas superficiais e subterrâneas, devido ao uso de fertilizantes e agrotóxicos, bem como erosão e salinização dos solos, enfatizando que a agricultura irrigada representa um agente potencial desses impactos.

Tais problemas foram apontados no EIA-RIMA de maneira tão somente superficial, sem nenhuma análise aprofundada e séria. Entende-se que não se apresentaram claras as dimensões das agressões, os sujeitos afetados, nem tampouco houve a preocupação de apresentar alternativas a tais violações.

O próprio RIMA (2009, p. 85) , de forma contraditória, aponta a necessidade de que a descrição dos impactos seja feita através da discussão dos mesmos, um a um, associando-se cada ação do empreendimento a cada componente dos meios abiótico, biótico e antrópico. O relatório, apesar de trazer essa previsão, não contempla a análise detalhada e individualizada dos impactos, nem trouxe alternativas locacionais e tecnológicas. Foram apontados 58 (cinquenta e oito) impactos considerados negativos pelo RIMA, assim como consta na (p. 58), no entanto, não se cumpriu com a previsão de análise individualizada de nenhum destes. A descrição das agressões deveria ser expressa, contemplando todas as possibilidades de violações decorrentes da implantação do projeto.

Desse modo, nos resta a seguinte indagação: Por que o DNOCS, que tem a função de promover obras de combate à seca, planeja desenvolver um projeto que só vai gerar impactos ambientais, sociais e culturais negativos, em uma região que possui uma vasta experiência no âmbito da agricultura e da pecuária?

Ainda dentro desse contexto, é importante lembrar que o RIMA prevê, também, o desmatamento da área onde o projeto será implantado, sugerindo três tipos de desmatamento a ser utilizado, a saber: desmatamento manual com destoca manual, desmatamento mecanizado e desmatamento manual sem destoca. O estudo enfatiza que: “O desmatamento trará prejuízos inevitáveis à fauna, mesmo tratando-se de uma área já modificada por ação antrópica, é preciso implantar medidas para o salvamento da fauna”, (p. 94). Acrescentando, em sua p. 95, que: “Com o desmatamento a população local ficará sujeita a acidentes com artrópodes, animais peçonhentos e mamíferos.” Sem, todavia, trazer mecanismos de prevenção precisos ou desaconselhar tal atividade.

Percebe-se que as medidas a serem adotadas para a implantação desse projeto acarretarão riscos à fauna, à flora, bem como à população local que, em nenhum momento é citada no estudo, nem tampouco é demonstrado mecanismos para sua remoção e reassentamento.

O relatório alerta para a problemática do uso dos agrotóxicos haja vista que centenas de famílias estarão expostas direta e/ou indiretamente a seu uso nas plantações (BRASIL. DNOCS, 2009, p. 99)

[…] o uso indiscriminado de agrotóxicos tem resultado em problemas ambientais graves, exigindo um controle rigoroso na sua aplicação. Os pesticidas, aplicados nas culturas, podem alcançar o solo, podendo aí permanecer por muito tempo, e serem carreados para os corpos d’agua.

E continua asseverando que:

Entre as consequências negativas do uso indiscriminado de agrotóxicos, podem ser destacadas: danos à saúde humana; aumento do número de pragas resistentes, resultando na necessidade da utilização de outros pesticidas; destruição de plantas úteis; destruição de insetos úteis, como as abelhas e animais polinizadores; mortalidade de animais, como peixes, invertebrados aquáticos, aves e mamíferos silvestres; contaminação de alimentos de origem vegetal ou animal, acumulando-se na cadeia alimentar até alcançar o homem.(BRASIL. DNOCS, 2009, p. 99)

É importante ressaltar que pela própria característica e função do agrotóxico consideramos não ser possível o seu uso seguro. Isso se torna mais preocupante levando-se em consideração que o Brasil é o líder mundial no uso de agrotóxicos, desde 2008. Os impactos ao meio ambiente e à saúde pública tem sido apontados por diversos estudos da Agência Nacional de Vigilância Sanitária – ANVISA e pela Associação Brasileira de Saúde Coletiva – ABRASCO. Atualmente estão em processo de reavaliação 14 princípios ativos de agrotóxicos, que já são proibidos no exterior. Além disso, consta nos estudos do Núcleo Trabalho, Meio Ambiente e Saúde – TRAMAS/UFC, que os impactos à saúde e ao trabalhador estão intimamente ligados aos Perímetros Irrigados.

Tal realidade é bastante preocupante em um território que há décadas se destaca na produção de mel e de polpas de frutas orgânicas, dentro da expressiva experiência de transição agroecológica da Chapada do Apodi. Assim, fica clara a incompatibilidade entre a matriz produtiva existente, baseada no não uso de defensivos agrícolas, com o modelo de produção de commodities em larga escala, por meio da intensa utilização de venenos. Aproximadamente 55 comunidades organizadas cooperativamente e de produção agroecológica estão na iminência de serem atingidas pelo empreendimento, emergindo a necessidade de que os órgãos competentes realizem a defesa e incentivo às experiências sustentáveis supracitadas, assim como preconiza o Decreto nº 7794/12, que institui a Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica.

Figura como um retrocesso a implantação de um projeto que se baseia no uso intensivo de venenos e que vai de encontro a todas as recomendações dos órgãos de saúde pública, bem como dos diversos estudos realizados nas universidades brasileiras, além de desprivilegiar um modelo de produção sustentável e de respeito à vida e ao meio ambiente.

É de suma importância, ainda, observar o que dispõe a Resolução nº1 – CONAMA, de 23 de janeiro de 1986, em seu Art. 11, §2º, sobre critérios básicos e diretrizes gerais para a avaliação de impacto ambiental.

Art. 11. Respeitado o sigilo industrial, assim solicitando e demonstrando pelo interessado o RIMA será acessível ao público. Suas cópias permanecerão à disposição dos interessados, nos centros de documentação ou bibliotecas da SEMA e do órgão estadual de controle ambiental correspondente, inclusive durante o período de análise técnica.

[…]

  • 2º Ao determinar a execução do estudo de impacto ambiental e apresentação do RIMA, o órgão estadual competente ou a SEMA ou, quando couber o Município, determinará o prazo para recebimento dos comentários a serem feitos pelos órgãos públicos e demais interessados e, sempre que julgar necessário, promoverá a realização de audiência pública para informação sobre o projeto e seus impactos ambientais e discussão do RIMA.

Tal audiência, juntamente com o RIMA, serve de base para análise e parecer final do órgão ambiental licenciador, com relação à aprovação ou não do projeto a ser implantado. Desse modo, faz necessário que seja amplamente divulgada, bem como que demonstre todos os impactos que poderão ocorrer no local, e possibilite a participação das comunidades a serem afetadas, oportunizando, assim, àqueles que serão direta ou indiretamente atingidos o conhecimento sobre as agressões ambientais, sociais, econômicas e culturais a que serão expostos. Essa participação poderia se dar por meio de uma AEA – Avaliação de equidade Ambiental, que seria

(…) como um instrumento de promoção da justiça ambiental que visa fortalecer os movimentos e grupos sociais atingidos nos processos de participação e tomada de decisão sobre empreendimentos que podem afetar seu modo de vida de forma direta ou indireta. A AEA procura construir um quadro abrangente para a avaliação de impacto, incorporando questões de participação pública, institucional e política. Inclui a consideração dos efeitos sociais, culturais, econômicos e institucionais vivenciados pelos grupos atingidos, assim como os efeitos nos modos de subjetivação e na saúde física e mental de indivíduos e grupos. A Avaliação de Equidade Ambiental busca centrar seu foco nas consequências sociais e culturais de qualquer atividade pública ou privada que altere de maneira indesejada a forma pela qual as pessoas moram, trabalham, se relacionam umas com as outras, elaboram sua expressão coletiva e seus modos próprios de subjetivação (Acselrad, 2011, p. 40)

No caso do Projeto de Irrigação Santa Cruz do Apodi não houve publicização de tal audiência. Portanto, se esta aconteceu foi realizada obscuramente, para assim encobrir os diversos impactos que atingirão a região da Chapada do Apodi se tal projeto se concretizar. Sendo assim, faz-se imprescindível a realização de uma nova audiência pública trazendo esclarecimentos sobre a implantação do referido projeto, e garantindo a efetiva participação daqueles que serão atingidos por meio da AEA.

Por fim, quanto às violações à questão ambiental que se apresentam de maneira mais clara, é importante ser lembrada a concernente aos recursos hídricos. De início, na página 03 do RIMA, o estudo afirma que a viabilidade do projeto dependerá das águas oriundas da transposição do Rio São Francisco. Todavia, tal informação será contraditada no mesmo estudo, como na página 18, onde se afirma que as águas do Rio São Francisco não alimentarão o projeto:

Diferentemente do primeiro estudo, o consórcio TECNOSOLO/HYDROS optou por considerar exclusivamente a disponibilidade hídrica da bacia hidrográfica do rio Apodi até a barragem Santa Cruz, sem reforços decorrentes da Transposição do Rio São Francisco, em virtude desta não representar uma infra-estrutura hídrica disponível na atualidade.

Mais a frente há um breve diagnóstico do panorama hídrico da região (fl. 34):

Observa-se do balanço hídrico que na região de Apodi ocorre déficit hídrico mensal durante quase todo o ano. O período de maior deficiência hídrica, apresentando valores superiores a 150 mm, está compreendido entre os meses de outubro e dezembro, fato decorrente da elevada evapotranspiração potencial, alcançando valores da ordem de 180 mm, e das baixas precipitações pluviométricas. Mesmo durante os meses de março e abril, quando ocorrem precipitações mais intensas, a pluviometria não é suficiente para gerar excedente hídrico.

Pelo que foi exposto até o momento, chegamos a duas conclusões: A primeira, de que o potencial hídrico do projeto se resumirá às águas da barragem de Santa Cruz. E a segunda, de que essa mesma barragem, por si só, não é capaz de dar segurança a imensa demanda de um projeto de irrigação como esse, uma vez que além de sua vazão limitada já é utilizada para diversos outros fins, como mencionado no RIMA. Assim conclui o relatório:

“As águas do açude somente podem atender a um terço da área a ser irrigada, ou seja, 3.000 ha. O volume útil do seu reservatório permite atender às demandas a ele atribuídas somente até o ano 2020 respeitando as garantias estabelecidas, ou seja, haverá falhas após 2020 se novas fontes hídricas não forem contempladas”. (pag. 34)

Não entendemos como mesmo após essa análise as autoridades públicas outorgaram a licença ambiental ao empreendimento. Ora, o estudo é muito claro ao afirmar que a reserva hídrica só seria capaz de satisfazer a um terço da necessidade do projeto e não aponta nenhuma outra reserva de água. E, mesmo essa pouca reserva, só seria disponível durante um reduzido espaço de tempo. Em outras palavras: a irrigação que seria a finalidade do empreendimento é tecnicamente irrealizável.

Cabe ainda questionar se a função múltipla da água também seria assegurada, pois é imprescindível a garantia de uma gestão hídrica responsável, com seu uso adequado. Percebemos que além de não haver viabilidade hídrica, o uso da água do perímetro irrigado não atenderia às necessidades da agricultura familiar camponesa, uma vez que seria voltada primordialmente para a produção em grande escala, característica do agronegócio, e com uso excessivo de venenos que provocaria a contaminação das já reduzidas fontes hídricas.

 Mesmo diante dessas fragilidades, o Relatório de Impacto Ambiental aponta que o projeto de irrigação tem um horizonte de 50 anos, a contar do início das obras. Porém, os dados trazidos até o momento levam à conclusão que isso seria impossível.

Temos que: o respectivo relatório é datado de setembro de 2009, porém a ordem de serviço somente foi assinada 3 anos depois (em 28/08/2012). Nesse ínterim, as desapropriações, ações judiciais, instalação do canteiro de obras, contratação dos trabalhadores, entre outros, demandarão razoável quantidade de tempo.

Supondo que as obras comecem em 2013, tomando por base experiências similares, estimamos que a primeira etapa do perímetro irrigado se iniciaria em meados de 2015. Assim, diante da limitação hídrica acima mencionada, o projeto não teria durabilidade de 50 anos, e sim de cinco já que o potencial de vazão da barragem Santa Cruz do Apodi para disponível apenas até o ano de 2020.

Resumindo, uma vez que o projeto apenas será abastecido pelas águas da barragem Santa Cruz do Apodi, com reservas tão somente até 2020, e que não há nenhuma previsão de novas fontes hídricas, teremos um gasto de dinheiro público no porte de R$ 280.000.000,00 (duzentos e oitenta milhões), para um projeto que terá vida útil de uma média de cinco anos e expulsará de maneira forçada cerca de seis mil pessoas desmantelando um arraigado modelo de agricultura familiar.

Portanto, ficam claras as violações aos direitos humanos, ambientais e sociais decorrentes da implantação do Projeto Santa Cruz do Apodi, além de serem explícitas as omissões e inconsistências do Relatório de Impactos ao Meio Ambiente – RIMA, razão pela qual torna-se urgente um estudo mais aprofundado, que leve em consideração o diálogo com as comunidades diretamente atingidas, bem como o real dimensionamento dos impactos.

  • AS AMEAÇAS AO PATRIMÔNIO HISTORICO E CULTURAL

Segundo o Relatório de Impactos ao Meio Ambiente – RIMA, há na área de influência indireta do empreendimento possui grande associação fossilífera do período cretáceo, com a presença de fósseis de grupos vertebrados e invertebrados, cuja importância se ressalta em função de seu valor histórico, científico e cultural para o estado do Rio Grande do Norte. Nesse sentido, de acordo com o Decreto-Lei nº 25/1937, que trata do tombamento de monumentos naturais de feição notável, os jazigos fossilíferos potiguares encontram amparo legal, objetivando sua proteção e conservação, assim como se observa no Art. 1º,§2º do Decreto citado:

Art. 1º Constitui o patrimônio histórico e artístico nacional o conjunto dos bens móveis e imóveis existentes no país e cuja conservação seja de interesse público, quer por sua vinculação a fatos memoráveis da história do Brasil, quer por seu excepcional valor arqueológico ou etnográfico, bibliográfico ou artístico.

[…]

  • 2º Equiparam-se aos bens a que se refere o presente artigo e são também sujeitos a tombamento os monumentos naturais, bem como os sítios e paisagens que importe conservar e proteger pela feição notável com que tenham sido dotados pela natureza ou agenciados pelo indústria [sic] humana.

Desse modo, por tratar-se de empreendimento potencialmente capaz de agressão ao patrimônio, faz-se necessária, para a garantia da conservação da supracitada associação fossilífera, a exaustiva descrição dos impactos que possam ocorrer com o implemento do projeto. Nesse sentido, observou-se clara omissão do EIA-RIMA no que se refere aos impactos diretos e indiretos às supracitadas associações de fósseis, sendo realizada apenas menção de sua existência, de modo que não foi possível visualizar o real grau das agressões.

Outro ponto importante é que o ‘Lajedo de Soledade’, um dos sítios arqueológicos mais importantes do Brasil, onde podem ser encontrados fósseis de animais pré-históricos, bem como pinturas rupestres datadas de 3 a 10 mil anos, está localizado na área de influência do Projeto de Irrigação. Com uma formação de rocha calcária do período paleolítico de idade geológica estimada em 90 milhões de anos, o Lajedo de Soledade consiste em um dos mais importantes patrimônios hitórico-culturais do país.

No entanto, os impactos ao ‘Lajedo de Soledade’ não foram contemplados no RIMA, percebendo-se sua supressão do relatório, assim como consta nas fls. 57-59, que tratam dos aspectos culturais, históricos e arqueológicos da área afetada pelo empreendimento e ferindo o que dispõe a Portaria 230/02 – IPHAN, em seu art. 1º. Tal dispositivo dispões acerca dos procedimentos sobre o Estudo de Impactos Ambientais, bem como do Relatório de Impactos ao Meio Ambiente – EIA/RIMA na fase de licenciamento prévio de empreendimentos potencialmente capazes de afetar o patrimônio cultural arqueológico.

Além disso, a omissão por parte do EIA-RIMA no que se refere ao ‘Lajedo de Soledade’ fere o que disciplina o Art. 2º, I, da mesma Portaria 230/02 – IPHAN, em que se exige que seja realizado o levantamento arqueológico, pelo menos, da área diretamente afetada:

Art. 2 – No caso de projetos afetando áreas arqueologicamente desconhecidas, pouco ou mal conhecidas, que não permitam inferências sobre a área de intervenção do empreendimento, deverá ser providenciado levantamento arqueológico de campo pelo menos em sua área de influência direta. Este levantamento deverá contemplar todos os compartimentos ambientais significativos no contexto geral da área a ser implantada e deverá prever levantamento prospectivo de sub-superficie.

I – O resultado final esperado é um relatório de caracterização e avaliação da situação atual do patrimônio arqueológico da área de estudo, sob a rubrica Diagnóstico.

Foi possível avaliar que o EIA-RIMA não apresentou o levantamento exigido no supracitado artigo, além de que, após sua apresentação aos órgãos competentes e da expedição da Licença Prévia ao empreendimento, não foi elaborado o Programa de Prospecção e Resgate exigido na fase de licenciamento prévio, como consta no Art. 4º da citada Portaria 230/02:

Art. 4 – A partir do diagnóstico e avaliação dos impactos, deverão ser elaborados os Programas de Prospecção e Resgate compatíveis com o cronograma de obras e com as fases de licenciamento ambiental do empreendimento, de forma a garantir a integridade do patrimônio cultural da área.

Ainda em relação ao ‘Lajedo de Soledade’, deve ser mencionado o Museu da Pedra, localizado na área de influência do projeto, cuja referência foi insuficiente no tocante ao dimensionamento dos impactos.

Outro ponto no qual houve menção apenas superficial, ficando clara a omissão dos impactos diretos e indiretos, foi o da existência das cavernas arqueológicas do município de Felipe Guerra (área de influência direta). Do mesmo modo que as associações fossilíferas mencionadas acima, as cavernas têm amparo legal e proteção do poder público, de acordo com a já citada Lei 025/1937, Art. 1º, §2º.

Também, segundo o RIMA, o Vale do Apodi possui uma quantidade indefinida de cavernas, das quais, graças ao trabalho de grupos de pesquisa voluntários, já foi possível catalogar cerca de 20, que deveriam ter sido contempladas de maneira pormenorizada no estudo de impactos ambientais. Verificou-se a incompletude do relatório, já que permitiu passar por despercebido o estudo de tantos exemplares que compõem o patrimônio histórico e cultural da área de implantação do projeto.

Outro ponto de suma importância se refere à menção do EIA-RIMA à existência da comunidade de Soledade, que, segundo o próprio relatório, se caracteriza como comunidade tradicional de remanescência quilombola. A proteção a esses grupos está prevista no Art. 226 – CF, incisos I e II, ao tratar do patrimônio cultural brasileiro, sejam eles bens de natureza material e imaterial. A violação aos direitos desses povos é também um caso de Racismo Ambiental, que segundo Pacheco (2007) seria as injustiças sociais e ambientais que afetam etnias e populações mais vulneráveis, como é o caso da comunidade quilombola.

Esse é o estado atual do Perímetro Irrigado Santa Cruz do Apodi, um projeto que, caso levado à frente, servirá de desarticulador da cultura, história e memória de centenas de famílias campesinas e de toda a sociedade. Tem-se aqui, porém, um diferencial: o projeto ainda não foi instalado e diante de todos os seus vícios há claras chances de ser embargado razão pela qual é tão esperançosa a resistência ao agronegócio/agrotóxicos/Perímetro Irrigado Santa Cruz do Apodi em defesa da agricultura familiar de base agroecológica na Chapada do Apodi-RN. A seguir, segue na íntegra a carta construída por agricultores familiares da Chapada do Apodi-RN, publicada no Dossiê da ABRASCO parte III que explicita as ações de resistência.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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BRASIL. Decreto nº0-001, de 10 de junho de 2011. Declara de utilidade pública, para fins de desapropriação, pelo Departamento Nacional de Obras Contra as Secas – DNOCS, a área de terra que menciona, localizada no Município de Apodi, no Estado do Rio Grande do Norte.

BRASIL. Decreto nº0-001, de 10 de junho de 2011. Declara de utilidade pública, para fins de desapropriação, pelo Departamento Nacional de Obras Contra as Secas – DNOCS, a área de terra que menciona, localizada no Município de Apodi, no Estado do Rio Grande do Norte.

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