Apresentação

A vasta expansão dos Perímetros Irrigados no semiárido é meta do governo federal na segunda fase do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). O Plano Plurianual de 2012-2015 prevê recursos na ordem de 6,9 bilhões de reais para ampliar a área irrigada em 193.137 hectares e instalar novos perímetros em 200.000 hectares.

A nova Política Nacional de Irrigação, expressa na Lei nº. 12.787, de 11 de janeiro de 2013, aponta o aumento da produtividade e da competitividade do agronegócio entre seus objetivos, deixando clara a orientação de incentivar projetos privados de irrigação (Artigo 4º, incisos I, IV e VII). Consolida e amplia, assim, o projeto geopolítico de expansão dos interesses do capital no campo e de controle da reação popular, iniciado desde os anos 1970, fortalecendo empresas nacionais e transnacionais do agronegócio que se instalam no semiárido para produzir commodities agrícolas, a partir de terra, água e mão de obra, facilidades de infraestrutura e de financiamento, encontrando condições políticas e institucionais cada vez mais favoráveis.

Para movimentos sociais do campo e pesquisadores que se dedicam ao tema, esta política representa a multiplicação e o agravamento de uma ampla cadeia de perdas, impactos e danos que os perímetros irrigados vêm produzindo ao longo de seus 40 anos de história no semiárido, absolutamente ignorados na definição da política. Radicaliza a sucessiva expropriação da terra aos povos originários do semiárido, num claro processo de contra-reforma agrária. Sob o véu do discurso neodesenvolvimentista, ocultam-se as profundas e complexas transformações impostas aos territórios de vida e trabalho das populações do campo. Muito longe de serem “beneficiadas” por esta opção do governo, têm seus modos de vida tradicionais – que lhes garante a existência e guarda saberes necessários ao futuro da humanidade – desqualificados como “atrasados” pelo discurso oficial e são vulnerabilizadas por injustiças, desigualdades, iniquidades e violação de direitos.

Desvelar este outro lado da política nacional de irrigação é o propósito deste Dossiê. Sistematizamos a experiência e o saber dos que vivem os conflitos nestes territórios e o conhecimento científico já produzido, no intuito de disponibilizar aos sujeitos sociais e políticos elementos para incidir sobre ela.

A proposta de construção do Dossiê nasce no âmbito do Movimento 21 – M21, uma articulação de movimentos sociais do campo, sindicatos de trabalhadores, pastorais sociais e pesquisadores, que se constitui a partir da reação ao assassinato da liderança camponesa Zé Maria do Tomé, ocorrido em 21 de abril de 2010, no contexto da luta pela terra e contra os agrotóxicos dos ex-irrigantes e desapropriados para a instalação do Perímetro Irrigado Jaguaribe-Apodi – PIJA, nos municípios de Quixeré e Limoeiro do Norte, na região do baixo vale do rio Jaguaribe, no Ceará. A análise da política de irrigação para o semiárido indicou ao M21 a replicação do modelo imposto à Chapada do Apodi – cujas consequências conhece bem, em muitos outros territórios. E com a agravante da forte concentração de recursos e poder nas mãos do setor empresarial, inclusive na gestão destas estruturas. A consciência da gravidade dos conflitos gerados pela expansão dos perímetros irrigados, estimulada pelo PAC, ancorou a decisão do M21 de alertar outros movimentos em territórios afetados ou ameaçados por perímetros irrigados, na perspectiva de articular e fortalecer a resistência e as lutas em defesa de seus direitos.

O Dossiê foi organizado a partir do Grupo de Pesquisa do M21[1], e foram convidados a se somar pesquisadores e pesquisadoras sobre o tema, inseridos nas seguintes instituições de ensino e pesquisa: Universidade Federal do Ceará – UFC, Universidade Estadual do Ceará – UECE, Universidade Estadual Vale do Acaraú – UVA, Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN e Universidade Estadual do Rio Grande do Norte – UERN. Constitui-se assim um grupo transdisciplinar de estudiosos com formação nos campos da geografia, saúde, direito, educação e história, motivado pelo compromisso com a função social da ciência e o papel da universidade pública em relação às classes e segmentos sociais vulnerabilizados, e disposto a construir novas práxis acadêmicas de produção de conhecimento em diálogo com outros saberes.

A metodologia de construção do Dossiê desenvolveu-se a partir do levantamento e estudo das teses, dissertações, artigos científicos, estudos de impacto ambiental e outros documentos oficiais ou produzidos pelos movimentos sociais sobre o tema. Em seguida foram elaborados estudos de caso, sistematizando as informações sobre cinco dos Perímetros Irrigados (PI) sobre os quais havia maior densidade de dados e análises disponíveis e que também representam a lógica de expansão do agronegócio no campo. São eles: PI Jaguaribe-Apodi (CE), PI Tabuleiro de Russas (CE), PI Baixo Acaraú (CE), PI Baixo Assú (RN), PI Santa Cruz do Apodi (RN) (veja mapa em anexo). Tais estudos de caso, na íntegra, compõem a Parte III deste documento. Trouxeram também elementos para compor a análise da história da política de irrigação até os dias atuais, apresentada na Parte II.

O passo seguinte foi a análise do conjunto dos estudos de caso para identificação dos elementos comuns e dos pontos estratégicos a serem ressaltados, dentro dos propósitos que nortearam a decisão de elaboração do Dossiê. Tal análise possibilitou a indicação da categoria violação de direitos como a que melhor possibilitaria visibilizar os diferentes processos desencadeados por esta política pública, na perspectiva dos que são por ela afetados. Permitiu compreender também que há especificidades distintas entre as fases de implementação e de operação dos PIs, as quais foram levadas em conta no trabalho de análise.

Foram então elaboradas grades analíticas das violações de direitos nestas fases, as quais foram apresentadas e discutidas com um amplo grupo de movimentos sociais do campo no Ceará e no Rio Grande do Norte, a saber: Associação dos Missionários e Missionárias do Campo (Nordeste), Associação Missionária Indigenista Tremembé, Cáritas Diocesana de Limoeiro do Norte/CE, Central Sindical Popular – CSP/Conlutas de Limoeiro do Norte/CE, Comissão Pastoral da Terra – CPT/RN,Comissão de Resistência de Lagoa dos Cavalos – Russas/CE,Conselho Indígena Tremembé de Almofala (CITA), Conselho Indígena Tremembé de Queimadas (CITQ), Marcha Mundial de Mulheres em Mossoró/RN,Movimento 21/CE, Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST/CE, Pastorais Sociais da Diocese de Limoeiro do Norte/CE,Rede Nacional de Advogados Populares – RENAP/RN e CE e Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Apodi/RN.

Definiu-se então que a análise seria focada na violação dos seguintes direitos:

  • —  À terra, ao território e à cultura
  • —  À participação política
  • —  À água
  • —  Ao meio ambiente
  • —  Ao trabalho digno
  • —  À saúde

O coletivo de pesquisadores e movimentos sociais decidiu também pela inclusão das vozes dos territórios no Dossiê, através de Cartas elaboradas pelas comunidades afetadas, a partir de debates coletivos organizados pelos movimentos sociais, num processo de construção compartilhada de conhecimentos. Em reconhecimento ao saber destas comunidades atingidas, advindo da experiência cotidiana com os impactos dos PIs, e em respeito à sua dor, estas Cartas abrem o Dossiê (Parte I).

Os textos resultantes da análise da violação de cada um dos direitos nos cinco PIs estudados foram elaborados pelos pesquisadores, em diálogo com especialistas do campo jurídico. Foram apresentados e discutidos em oficina de trabalho envolvendo outros pesquisadores e movimentos sociais, na perspectiva da integração das diferentes dimensões analisadas, cujas contribuições foram incorporadas aos textos apresentados na Parte II.

Esperamos que este Dossiê, fruto de quase dois anos de trabalho, possa contribuir para ampliar a potência argumentativa e política dos movimentos sociais, desvelando informações e análises críticas que alimentem a articulação de lutas por políticas e recursos públicos que decididamente contemplem a perspectiva dos povos do semiárido. Esperamos também que a mídia, os operadores do Direito, professores, pesquisadores, estudantes possam contribuir na divulgação e no protagonismo de diferentes ações que contribuam na reversão deste processo. Esperamos ainda que parlamentares, gestores, técnicos, servidores públicos possam rever sua atuação rumo a políticas que respeitem, valorizem e garantam o modo de vida da agricultura camponesa, ao tempo em que invistam os recursos públicos no atendimento das necessidades que estes sujeitos apontam para construir o futuro que desejam para suas vidas, muito longe do paradigma do capital espoliador e do Estado que lhe serve.

A comunidade de construção do Dossiê

[1] Grupo de Pesquisa cadastrado no CNPq sob o título: Ecologia de saberes para promoção da equidade ambiental e em saúde no trabalho no contexto da expansão do agrohidronegócio nos territórios do Vale do Jaguaribe-CE.

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